Dança
da decepção
Uma leitura das relações raciais no Brasil
Abdias do Nascimento
Elisa Larkin Nascimento
Introdução
Quando, para os europeus, a América do Sul ainda não passava de
uma hipótese fantasiosa de aventureiros e sonhadores confirmada apenas
por informações oriundas da África, Portugal e Espanha
já estavam dividindo entre si o continente. De acordo com os termos do
Tratado de Tordesillas, de 1494 - uma espécie de Conferência de
Berlim ao estilo real ibérico - os portugueses asseguraram para si o
maior território, virtualmente um subcontinente, comparável em
área aos Estados Unidos, sete vezes o tamanho da África do Sul
e gigante em comparação com qualquer outro país da região.
Trata-se de um território de fabulosa riqueza natural, a começar
pelo próprio solo, que "em se plantando, tudo dá"; um
subsolo recheado de metais preciosos; vias aquáticas, florestas, e vastas
áreas de terras férteis abrangem o Amazonas, o Pantanal, e várias
outras regiões diversas; a fauna abundante espera a rede do pescador
e a perseguição do caçador - o país abriga a maior
biodiversidade do planeta.
Com tal base material
para construir-se, e uma população atual de quase 160 milhões,
não surpreende que hoje o Brasil seja rotineiramente citado como futura
potência mundial. Tem uma base industrial sólida, infraestrutura
agrícola modernizada, e um terceiro setor (serviços) altamente
atrativos ao investimento estrangeiro. As forças armadas poderosas, o
domínio de tecnologia espacial e de satélites e da energia nuclear,
recursos hidroelétricos abundantes, gás natural e o combustível
renovável desenvolvido com base no álcool de cana da açúcar,
estão entre as vitrines da deslumbrante riqueza de recursos do Brasil.
Entretanto, estes existem ao lado de cenas de atraso em que o tempo parece ter
parado há séculos, o progresso humano banido pela miséria
esquálida das "vidas secas".
Não é possível compreender tais contrastes sem levar em conta a sua dimensão racial; as "vidas secas" do Brasil são em sua esmagadora maioria não-brancas. Embora as raízes da desigualdade tenham muito em comum com aquelas existentes em outros países em desenvolvimento, há também algumas singularidades que moldam e influenciam seus contornos e as perspectivas de políticas voltadas à sua solução. No caso das desigualdades raciais no Brasil, em comparação com os Estados Unidos e com a África do Sul, a singularidade mais destacada é a ausência de segregação racial por legislação e a cultura nacional da "democracia racial" que funciona como cortina de fumaça a disfarçar as nítidas iniqüidade raciais.
A desigualdade no
Brasil: um panorama geral
Cabe ao Brasil como uma luva a descrição que nosso colega Wilmot
James (1999) faz do desenvolvimento econômico sul-africano: "...
o progresso econômico no século XX tem sido um amálgama
da exploração opressiva e do avanço racional-técnico."
Embora comande uma posição avançada em termos de desenvolvimento
econômico - entre as dez maiores economias do mundo - , em relação
ao desenvolvimento social o Brasil se compara de forma desfavorável a
seus vizinhos (Tabela 1). Em 1995, seu PIB per capita era significativamente
mais baixo que o da Argentina ou do Uruguai, porém três vezes mais
alto que o do Paraguai. No entanto, 43% dos domicílios brasileiros estavam
em situação de pobreza, uma proporção mais alta
que no Paraguai e mais de quatro vezes maior que na Argentina e no Uruguai (Cruz,
1998: 27-28). O Brasil tinha a taxa de alfabetização mais baixa
e de longe a mais alta taxa de mortalidade entre crianças com menos de
cinco anos de idade: cinqüenta mortes em cada mil, contrastado a aproximadamente
dezoito em cada mil, entre os afro-americanos dos Estados Unidos (Asante e Mattson,
1991: 166). O salário mínimo era quatro vezes menos o da Argentina
e menos de metade do de Paraguai. O valor do salário mínimo no
momento que redigimos este texto é de aproximadamente US$75,00, mais
de dez vezes menos daquilo que se define como pobreza nos Estados Unidos.
Tabela 1: Dados comparativos para
os países do Mercosul.
Argentina | Brasil | Paraguai | Uruguai | |
Área (milhares de km2) |
2.737 | 8.457 | 397 | 175 |
População | 35.219.612 | 157.871.980 | 4.959.713 | 3.146.200 |
Produto Interno Grosso* | 5.120 | 3.370 | 1.148 | 6.550 |
Percentagem de domicílios
na pobreza |
10,0 (áreas urbanas exclusivamente) |
43,0 | 41,0 | 7,0 |
Percentagem de alfabetizados | 96,2 | 79,9 | 91,2 | 98,0 |
Taxa de mortalidade de crianças com menos de 5 anos | 25,3 | 50,2 | 29,0 | 24,4 |
Salário mínimo mensal ** | 400,00 | 108,00** | 234,00 | 88,00 |
* Expresso em dólares constantes
de 1990.
** Com a crise cambial de fevereiro de 1999, o valor do salário mínimo
no Brasil despencou a um valor menor que o citado nesta tabela para o Uruguai
- aproximadamente US$75,00.
Fonte: CEPAL (1995), apud. Cruz, 1998: 28-29.
Em 1981, o Brasil ficava atrás apenas do Haiti e da Serra Leoa com a
terceira mais injusta distribuição de renda no mundo ; desde então,
a concentração de renda vem aumentando de forma consistente (Tabelas
2, 3, e 4). Igualmente importante, ou talvez mais ainda, que os níveis
abjetos de miséria que acentuam essa desigualdade, são os níveis
extravagantemente altos de renda abocanhada pelos ricos (Roque e Corrêa,
1998: 3).
Tabela 2: Evolução
da concentração de renda no Brasil, 1960-2000*
(percentagem).
Ano/Renda | 1960 | 1970 | 1980 | 1990 | 2000 |
50% mais pobres | 18 | 15 | 14 | 12 | 11 |
20% mais ricos | 54 | 62 | 63 | 65 | 64 |
Índice de desigualdade | 3 | 4.1 | 4.5 | 5.4 | 5.8 |
*Projeção. Fonte: IPEA/IBGE, apud. Mantega, 1998: 99.
Tabela 3: Índices de desigualdade no Brasil.
Proporção da renda apropriada por | 1981 | 1985 | 1988 | 1990 | 1993 | 1995 |
10% mais pobres | 0.78 | 0.76 | 0.59 | 0.58 | 0.38 | 0.43 |
20% mais pobres | 2.5 | 2.4 | 2.0 | 2.0 | 1.8 | 1.9 |
30% mais pobres | 5.0 | 4.8 | 4.2 | 4.1 | 4.1 | 4.2 |
40% mais pobres | 8.4 | 8.0 | 7.2 | 7.1 | 7.4 | 7.3 |
50% mais pobres | 12.9 | 12.3 | 11.2 | 11.2 | 11.6 | 11.6 |
Coeficiente GINI | 0.59 | 0.60 | 0.62 | 0.62 | 0.61 | 0.61 |
Fonte: Compilado pelo IPEA a partir de dados do PNAD 1996.
Tabela 4: Composição do Produto Interno Grosso, 1990-1996 (percentagens).
Ano/ |
1990 | 1991 | 1992 | 1993 | 1994 | 1995 | 1996 |
Capital | 33 | 38 | 38 | 35 | 38 | 40 | 41 |
Trabalho | 45 | 42 | 44 | 45 | 40 | 38 | 38 |
Fonte: IBGE e Folha de São Paulo, apud. Mantega, 1998.
Com o tempo, os pobres
não apenas ficam mais pobres, como são sujeitos a condições
de vida cada vez mais subhumanas. Enquanto uma elite minoritária consome
importados de luxo nos shoppings urbanos, médicos nas regiões
rurais e nas comunidades pobres urbanas prescrevem arroz, feijão e leite
para curar uma das doenças que mais afligem crianças: a fome.
Antes de tratar o aspecto
racial da desigualdade, convém esclarecer como se identificam no Brasil
os grupos raciais. Os dados oficiais do censo brasileiro utilizam duas categorias
de cor para referir-se aos afro-descendentes: "preta" e "parda".
Essa distinção tem se revelado arbitrária e subjetiva a
ponto de ter pouco significado; entretanto, leva as pessoas não familiarizadas
com o contexto demográfico brasileiro a confundir o grupo menor de "pretos"
como negro. Hoje, é aceita por consenso a convenção de
identificar a população negra como a soma das categorias "preta"
e "parda"; refere-se a ela como "negra", "afro-brasileira"
ou "afrodescendente". Expressões em inglês como "black",
"African Brazilian" e "pessoas de descendência africana"
referem-se à mesma soma dos dois grupos. Vale notar também que
as categorias "branca" e "parda" são notoriamente
inflacionadas, e a "preta" diminuída, pela tendência
dos entrevistados afrodescendentes de classificar-se como brancos ou mulatos
(Mortara, 1970).
Assim, embora de acordo
com as estatísticas oficiais a soma dos pretos e pardos represente 48%
da população, as estimativas atingem os 70% a 80% ao levar em
conta a distorção que resulta do ideal do embranquecimento. Certamente,
os negros constituem a maioria da população brasileira. Esse fato
é essencial à leitura dos dados a seguir apresentados.
A hierarquia e a segregação
raciais estão indelevelmente estampadas em paisagens contrastantes de
luxo e privação, sendo os afro-brasileiros os residentes das favelas,
mocambos, palafitas, e assim por diante, em proporção muito maior
que sua participação na população em geral. Visitar
a Central do Brasil é testemunhar os trens perigosamente dilapidados
a levar horas para transportar os trabalhadores, na sua esmagadora maioria negros,
da imensa região metropolitana chamada Baixada Fluminense para o local
de trabalho na capital, uma cena que lembra a jornada dos negros sul-africanos
das townships segregadas. O contraste racial entre uma escola pública
na Baixada - ou nos subúrbios pobres ou nas favelas de quase qualquer
lugar no Brasil - e uma universidade localizada numa região rica como
a Zona Sul do Rio de Janeiro está muito próximo a duplicar a diferença
entre o colégio de uma township e uma universidade branca na África
do Sul. A diferença é que na township sul-africano encontra-se
universidades negras, que existiam mesmo sob o regime do apartheid; no Brasil,
não.
A Baixada Fluminense
já foi classificada pela Organização Mundial da Saúde
como o segundo mais miserável bolsão de pobreza no mundo, superado
apenas por Bombaim; entretanto, sua situação não é
excepcional no Brasil, pois são comuns em todo o país tais cenários.
Por isso, a Baixada oferece um retrato de desigualdade que não deixa
de ser representativo.
Quase inteiramente negros,
os cinco municípios da Baixada vivem quase inteiramente sem esgoto; as
crianças brincam no fedor das valas abertas que levam a sujeira através
das ruas lamacentas e infestadas de mosquitos. Chamam-se "valas negras",
numa alusão não excepcionalmente racista que identifica as pessoas
afro-brasileiras com o esgoto não tratado a que são expostos em
proporção maior que sua participação na população.
A lepra (hanseníase) e outras epidemias de doenças passíveis
de prevenção, como a dengue, constituem problemas de saúde
pública em grande parte intocadas por políticas públicas
nessas áreas. Setenta por cento das crianças da baixada são
severamente subnutridas. A baixada excede os townships sul-africanos não
apenas nos índices de pobreza, como também na violência.
Há mais óbitos por homicídio que por acidente de automóvel.
Os níveis extremamente desequilibrados de desenvolvimento dentro dessa imensa nação se traduzem em impressionantes diferenças regionais. Talvez a maior expressão da desigualdade social seja o abismo que separa os residentes de regiões urbanas desenvolvidas das populações rurais miseráveis das quais os afro-brasileiros constituem maioria (IBGE, 1997: 46). Se a Baixada Fluminense pode ser comparada aos townships sul-africanos, as regiões do norte e nordeste assemelham-se aos bantustans . O grupo afro-brasileiro (soma das categorias preto e pardo), que segundo as reduzidas estatísticas oficias constitui 45% da população, se concentra em participações da ordem de 70% (Tabela 5) - portanto em proporções de fato bem maiores - nessas regiões, onde a prática da escravidão continua impune e onde a semi-escravidão não deixa de ser comum. Os assassinatos de líderes rurais de sindicatos e comunidades constituem fatos rotineiros da impunidade: entre 1964 e 1986, registraram-se mais de mil, e incontáveis outros ficaram sem registro (SBPC, 1987).
Tabela 5: Distribuição
da população por cor/raça - 1996 (Percentagem).
Branca | Preta | Parda | Oriental | Índio | |
Brasil | 55,2 | 6,0 | 38,2 | 0,4 | 0,2 |
Norte urbano** | 28,5 | 3,7 | 67,2 | 0,4 | 0,2 |
Nordeste | 30,6 | 6,1 | 62,9 | 0,1 | 0,2 |
Sudeste | 65,4 | 7,4 | 26,5 | 0,6 | 0.1 |
Sul | 85,9 | 3,1 | 10,5 | 0,4 | 0,1 |
Centro-Oeste | 48,3 | 4,0 | 46,6 | 0,6 | 0,5 |
Fonte: PNAD 1996.
*Excluídos os que não declaram a cor.
**Excluindo as regiões rurais de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima,
Pará and Amapá.
O ínfimo grupo
oriental que consta da tabela (menos de 0,5%) representa a mais recente de uma
série de ondas de imigração incentivadas pelo governo brasileiro
desde a última metade do século passado. Ativa na agricultura,
essa comunidade asiática, na sua maioria japonesa, se concentra no próspero
interior do Centro-Oeste, bem como nos centros urbanos e no interior desenvolvido
do sudeste. No nordeste pobre, os orientais constituem um décimo de um
porcento da população. Apesar de terem chegado no Brasil muito
recentemente, sobretudo se comparados aos negros que estão aqui há
quinhentos anos, os asiáticos em geral desfrutam uma posição
muito melhor na escala de renda, com implicações positivas para
o acesso à educação, emprego e habitação.
Os dados apresentados na Tabela 2 do Apêndice, por exemplo, mostram que
nos cinco mais baixos déceis de renda a participação dos
orientais é 100% menor do que sua participação na população
em geral, enquanto nos déceis oito, nove e dez, da renda mais alta, estão
presentes respectivamente duas, três, e seis vezes mais que sua parte
na população. Edson Lopes Cardoso (1999) nota o contraste entre
dois importantes bairros urbanos chamados de Liberdade: o bairro oriental em
São Paulo e a Liberdade afro-brasileira de Salvador, capital do estado
nordestino da Bahia. Em São Paulo, parece natural que as ruas da Liberdade
sejam pontilhadas de avisos anunciando: "Procura-se: boy oriental"
ou "Precisamos balconista japonês". Ninguém considera
estranho que nos bancos da Liberdade paulista encontrem-se caixas japoneses
ou nas lojas gerentes asiáticos. Entretanto, na Liberdade de Salvador,
onde a população é negra na ordem de 90%, os caixas de
banco e gerentes de loja são quase sempre brancos (ou até mesmo
japoneses), e qualquer sugestão de preferência por negros em emprego,
educação, acesso a lazer ou a serviços públicos
é condenada com veemência e indignação como racista
pela sociedade baiana.
Os índios brasileiros,
habitantes originais desta terra, têm sido vítimas do genocídio
desde os tempos coloniais. O resultado é que hoje constituem menor parcela
da população geral do que os orientais, até mesmo na região
Centro-Oeste onde são mais numerosos. Vivendo hoje uma pobreza desesperadora,
privados de suas terras e tradições, o suicídio alastrando-se
entre seus jovens em proporções epidêmicas, os poucos índios
que sobram continuam lutando para sobreviver. Ao longo da história do
país, ora têm sido desprezados, ora romantizados, tornando-se neste
século o símbolo do movimento modernista dos artistas e intelectuais
da elite urbana. O lema modernista da antropofagia constitui uma imagem muito
adequada de como a sociedade e a cultura brancas do Brasil metaforicamente teriam
"comido" e digerido o que elas definiram como tradições
indígenas e afro-brasileiras, alegando ter produzido uma nova cultura
"sincrética" moderna. Essa imagem auto-elogiosa era ao mesmo
tempo auto-ilusória, pois à medida que os modernistas acreditaram
que estivessem rejeitando os padrões coloniais europeus em favor dos
"mais autênticos", indígenas e africanos, na verdade
eles compreendiam muito pouco da tradição indígena ou africana
e limitavam-se a articular slogans novos porém ainda ocidentais na sua
essência.
O que diferencia a situação
racial no Brasil da que vive a África do Sul ou os Estados Unidos não
é tanto a natureza da injustiça social quanto essa dança
da decepção ideológica. Tradicionalmente, os analistas
permaneceram tão enamorados da idéia da harmonia entre as raças
no Brasil que ignoram em grande parte as desigualdades raciais. Quando reconhecidas,
estas são atribuídas ao que os intelectuais brasileiros chamam
"a questão social", em oposição à "questão
racial". Sendo esta última considerada pouco relevante no Brasil,
as desigualdades de natureza racial são imputadas ao legado histórico
da escravidão, considerando-se insignificativa na sua composição
a discriminação racial atual ou recente. Embora reconheça-se
a existência do "preconceito" - ao contrário da "discriminação"
- este é visto como apenas um problema estético que exerce pouca
influência, talvez nenhuma, sobre a realidade social.
A potência de
tais idéias, popularizadas a um ponto talvez sem precedentes entre as
teorias acadêmicas de ciências sociais, tem sido tão central
na articulação da consciência nacional brasileira a ponto
de dotá-las de uma aura próxima ao tabu.
Em tempos recentes, porém, a natureza racial das desigualdades tem sido
progressivamente demonstrada pela pesquisa das ciências sociais, de forma
que Roque e Corrêa possam observar (1998) que "... dois fatores de
disparidade atravessam diferentes níveis de reprodução
da desigualdade social e têm profundas raízes na cultura brasileira:
gênero e raça."
Entretanto, no Brasil a distinção de gênero não pode ser compreendida de forma adequada sem considerar a questão racial. Na hierarquia da renda, o primeiro fator determinante é raça, depois gênero. As mulheres brancas mantém uma posição nitidamente privilegiada em relação aos homens negros, e as mulheres afro-brasileiras estão no mais baixo degrau da escala de renda e emprego, como demonstram claramente as Tabelas 6 e 6A abaixo, bem como as Tabelas 2 a 4 do Apêndice. Os homens brancos recebem mais de três vezes o que ganham as mulheres afro-brasileiras, que por sua vez ganham a metade ou menos da metade do valor da renda mediana da mulher branca.
Tabela 6: Renda média
por gênero e raça.*
Homens brancos | 6.3 |
Mulheres brancas | 3.6 |
Homens negros | 2.9 |
Mulheres negras | 1.7 |
*Expresso em múltiplos do salário mínimo mensal. Fonte: IBGE, 1994.
Tabela 6A: Renda média por gênero e raça (R$).
Cor | Gênero Masculino | Gênero Feminino | Total |
Branca | 757,51 | 459,20 | 630,38 |
Preta | 338,61 | 227,13 | 292,05 |
Parda | 359,27 | 234,72 | 309,66 |
Total | 589,89 | 370,33 | 498,57 |
Fonte: PNAD, 1996. Compilação por Nelson do Valle Silva/ IUPERJ.
As disparidades de renda entre os grupos raciais também são observadas regionalmente. A Tabela 7 mostra que o norte e nordeste, onde os afro-brasileiros constituem a grande maioria da população, têm os níveis mais baixos de renda e de atividade econômica do país, e as mais altas taxas de desigualdade (índice Gini). A Tabela 8 mostra a renda familiar média por região, confirmando que as regiões com populações maioritariamente afro-brasileiras são de longe as mais pobres.
Tabela 7: Renda e
índices de desigualdade por região.
Renda média mensal (R$) | Índice Gini | Taxa de atividade econômica | |
Brasil | 290 | 0,590 | 59,1 |
Norte urbano** | 236 | 0,569 | 54,9 |
Nordeste | 158 | 0,590 | 57,9 |
Sudeste | 366 | 0,569 | 58,1 |
Sul | 325 | 0,567 | 64,6 |
Centro-Oeste | 290 | 0,599 | 61,6 |
Fonte: IBGE, 1997;
PNAD, 1996.
*População de 10 anos ou mais, com ou sem renda.
**Excluídas as áreas rurais de Rondônia, Acre, Amazonas,
Roraima, Pará and Amapá.
Tabela 8: Renda familiar
média por região,* 1996.
Até 2 | Mais de 2 até 5 | Mais de 5 até 10 | Mais de 10 até 20 | Mais de 20 | Sem renda** | |
Brasil | 22,9 | 29,2 | 21,0 | 12,5 | 8,4 | 3,7 |
Norte urbano*** | 23,1 | 31,4 | 20,7 | 12,0 | 6,4 | 5,1 |
Nordeste | 40,6 | 30,2 | 11,9 | 5,4 | 3,6 | 5,1 |
Sudeste | 14,1 | 27,4 | 25,4 | 16,6 | 11,4 | 2,9 |
Sul | 17,8 | 30,5 | 24,9 | 13,9 | 8,7 | 2,6 |
Centro-Oeste | 21,7 | 32,1 | 20,0 | 11,5 | 8,4 | 4,3 |
Fonte: PNAD, 1996.
* Expressa em múltiplos do salário mínimo mensal.
** Excluídos os que não declararam a renda.
***Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima,
Pará and Amapá.
Se as regiões habitadas por mais brasileiros afrodescendentes são indubitavelmente as mais pobres, existem também diferenças consistentes e muito significativas entre os grupos raciais ou de cor dentro de cada região. A Tabela 10 demonstra, por exemplo, que nos estados mais ricos da região sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo) a incidência de miséria é duas ou três vezes mais alta entre os negros que entre os brancos. No nordeste, a proporção de negros na miséria é uma terça parte mais alta que a de brancos; na região do norte e do Centro-Oeste, é mais de 60% mais alta. As Tabelas 4-8 do apêndice mostram que essas diferenças prevalecem independentemente das variações de nível de instrução, idade e gênero do chefe de família, número de dependentes na família, e área residencial.
Tabela 9: Incidência de carência (renda familiar per capita até ¼ de um salário mínimo) por cor do respondeste e região (1988).
Estado/Região | Cor Branca | Cor Preta | Cor Parda |
Rio de Janeiro (Sudeste) | 6,0% | 12,7% | 13,8% |
São Paulo (Sudeste) | 4,0% | 12,3% | 8,7% |
Sul | 15,2% | 23,8% | 27,9% |
Minas Gerais/Espírito
Santo (Sudeste) |
19,4% | 37,7% | 35,1% |
Nordeste | 38,5% | 51,3% | 49,5% |
Norte/Centro-Oeste | 14,0% | 26,9% | 23,2% |
Fonte: IBGE/ PNAD, 1988. Tabulação de Nelson do Valle Silva.
No Brasil em geral,
os negros ganham menos da metade do que ganham os brancos (Silva, 1998). Aproximadamente
26% dos negros, contra 16% dos brancos, ganham menos de um salário mínimo,
enquanto 1% de negros, contra 4% dos brancos, ganham mais que dez vezes o valor
do salário mínimo. Os afro-brasileiros instruídos ganham
menos que os brancos com o mesmo nível de educação, e nas
faixas de renda mais altas recebem aproximadamente 5.6 vezes menos que os brancos.
A Tabela 10 mostra que a proporção de negros que vivem na carência,
ganhando menos que R$38,00 mensais, é duas vezes maior que entre os brancos.
A relação inversa prevalece nas camadas de renda mais alta, sendo
a proporção de brancos nas faixas altas de renda três, quatro
ou cinco vezes maior que entre os negros. Apenas na categoria de renda entre
metade de um salário mínimo e um salário mínimo
(aqueles que ganham entre US$16,00 e $32,50 mensais) as diferenças entre
os grupos de raça ou cor são menos acentuadas. Aproximadamente
um quarto dos brancos, dos pretos e dos pardos aparecem nessa categoria, fato
que ilustra graficamente os níveis de pobreza no Brasil. Já no
próximo nível de renda, entretanto, entre aqueles que ganham entre
um e dois salários mínimos, a proporção de brancos
é duas vezes mais alta que a de negros, uma diferença que cresce
à medida que elevam-se os níveis de renda.
Tabela 10: Renda familiar per capita por cor do respondente (Brasil, 1988).
Renda familiar per capita | Cor Branca | Cor Preta | Cor Parda |
Até ¼ salário mínimo | 14,7 | 30,2 | 36,0 |
¼ a ½ | 19,2 | 27,4 | 26,8 |
½ a 1 | 24,2 | 24,9 | 20,7 |
1 a 2 | 20,2 | 12,0 | 10,6 |
2 a 3 | 8,2 | 2,7 | 2,9 |
3 a 5 | 6,5 | 1,6 | 1,8 |
5 a 10 | 4,5 | 0,8 | 0,9 |
10 a 20 | 1,5 | 0,3 | 0,2 |
20 ou mais | 0,3 | 0,1 | 0,0 |
Total | 100% | 100% | 100% |
Fonte: IBGE, PNAD-88. Tabulação de Nelson do Valle Silva/ IUPERJ.
A situação da mulher afro-brasileira é o próprio retrato da feminização da pobreza observada pelo movimento das mulheres em todo o mundo durante as últimas décadas. Oitenta por cento das mulheres negras empregadas estão concentradas em ocupações manuais; mais de metade são empregadas domésticas e as demais são autônomas oferecendo serviços domésticas (lavar, passar, cozinhar, etc.). Trata-se de uma das ocupações mais mal pagas na economia brasileira. Aproximadamente uma em quatro mulheres chefes de família afro-brasileiras ganham menos que um salário mínimo (Castro, 1991). Esses parâmetros têm permanecido constantes ou piorado com o tempo. As taxas de desemprego são mais altas entre os negros, o que sugere que as mulheres afro-brasileiras respondem por mais que sua parte das taxas extraordinariamente altas entre as mulheres em geral.
Tabela 11: Taxas
de desemprego por raça e gênero, 1996.
Total | Homens | Mulheres | Brancos | Negros (pretos/pardos) | |
Brasil | 6,9 | 5,7 | 8,8 | 6,7 | 7,7 |
Norte urbano** | 7,7 | 6 | 10,2 | 6,8 | 8,2 |
Nordeste | 6,3 | 5,2 | 7,8 | 5,7 | 6,5 |
Sudeste | 7,7 | 6,2 | 9,8 | 7,4 | 8,7 |
Sul | 5,4 | 4,5 | 6,6 | 5,1 | 8,1 |
Centro-Oeste | 7,9 | 6,2 | 10,5 | 7,6 | 8,7 |
Fonte: PNAD, 1996.
*População com dez anos ou mais, com ou sem renda.
**Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima,
Pará and Amapá.
Entre os pobres, não
apenas as famílias negras estão presentes acima de sua proporção
na população em geral, como também sua renda per capita
está num nível mais baixo, o que significa que necessitam que
mais pessoas da família devem trabalhar para conseguir renda familiar
equivalente. As crianças freqüentemente precisam deixar de estudar
para "ajudar a família" cortando cana, trabalhando nas colheitas
ou nas minas, vendendo doces no sinal luminoso da esquina. As taxas de analfabetismo
entre os afro-brasileiros são mais que duas vezes maiores que entre os
brancos, e a porcentagem de negros com nove anos ou mais de estudos é
quase três vezes menor que entre os brancos. Uma criança afro-brasileira
tem uma chance de mais ou menos 66% de obter uma educação básica,
ao passo que a branca teria 85% de chance. Uma vez completado o ensino básico,
as chances da criança negra de continuar para a escola secundária
são da ordem de 40%, enquanto uma criança branca tem 57% de chance.
Os afro-brasileiros que completam o ensino médio têm aproximadamente
metade da oportunidade dos alunos brancos de seguir para a universidade (Sant'Anna
and Paixão, 1998: 112-114.)
As seguintes tabelas dão uma idéia dos índices de escolaridade e alfabetismo por região, gênero e cor. A Tabela 12 mostra que as taxas de analfabetismo são de longe as mais altas no nordeste pobre e predominantemente negro, onde menos se matricula crianças. As diferenças na escolaridade (Tabela 13) são sensivelmente maiores entre negros e brancos do que entre homens e mulheres em todas as regiões, fato confirmado pela Tabela 14. Esta mostra que a proporção das mulheres brancas que têm até um ano de ensino eqüivale à metade da proporção de mulheres negras; entre homens brancos e homens negros essa diferença é ligeiramente menos acentuada. Nessa faixa de escolaridade, como em todas as outras, a diferença entre os homens brancos e as mulheres brancas é sensivelmente menor que aquela verificada entre brancos e negros em geral; entre homens negros e mulheres negras, a diferença se revela ainda menos acentuada. A proporção de negros (homens e mulheres) com 11 a 16 anos de escolaridade é mais ou menos a metade da proporção dos brancos (homens e mulheres). As mulheres negras estão ligeiramente mais presentes que os homens negros nas categorias mais altas de ensino, mas essa brecha é insignificante quando comparada com a diferença entre negros e brancos em geral: na categoria de quinze anos de ensino ou mais, a proporção de brancos chega a ser seis vezes maior que a de negros.
Tabela 12: Taxas
de analfabetismo e matrícula,* 1996
Taxas de analfabetismo | Taxas de matrícula | |||||
Total | Homens | Mulheres | Total | Homens | Mulheres | |
Brasil | 14,7 | 14,5 | 14,8 | 91,2 | 90,6 | 91,8 |
Norte urbano ** | 11,6 | 11,2 | 11,9 | 92,1 | 92,1 | 92,2 |
nordeste | 28,7 | 31,1 | 26,6 | 86,4 | 84,8 | 88,0 |
Sudeste | 8,7 | 7,5 | 9,9 | 94,1 | 93,9 | 94,3 |
Sul | 8,9 | 7,8 | 9,9 | 93,6 | 94,1 | 93,0 |
Centro-Oeste | 11,6 | 11,3 | 11,8 | 92,9 | 92,5 | 93,4 |
Fonte: PNAD, 1996.
* Pessoas com 15 anos ou mais.
**Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima,
Pará and Amapá.
Tabela 13: Escolaridade
média em anos de estudo por raça, gênero e região,
1996.
Total | Homens | Mulheres | Brancos | Negros (Pretos/Pardos) | |
Brasil | 5,3 | 5,2 | 5,4 | 6,2 | 4,2 |
Norte urbano ** | 5,2 | 4,9 | 5,4 | 6,3 | 4,7 |
Nordeste | 3,9 | 3,6 | 4,2 | 4,8 | 3,5 |
Sudeste | 6,0 | 6,0 | 6,0 | 6,6 | 4,9 |
Sul | 5,8 | 5,8 | 5,8 | 6,0 | 4,3 |
Centro-Oeste | 5,5 | 5,2 | 5,5 | 6,3 | 4,7 |
Fonte: PNAD, 1996.
* Pessoas com dez anos ou mais.
** Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima,
Pará and Amapá.
Tabela 14: Anos de escolaridade (%) por gênero e cor do respondente, pessoas de 20 anos ou mais.
Homens | Mulheres | |||||
Anos de escolaridade | Brancos | Preta | Parda | Brancos | Preta | Parda |
Nenhum/ menos de 1 ano | 16,2 | 24,0 | 23,4 | 11,2 | 25,5 | 21,0 |
1 a 3 anos | 17,0 | 23,8 | 25,8 | 15,7 | 21,4 | 23,2 |
4 a 7 anos | 36,6 | 33,9 | 32,0 | 35,5 | 32,3 | 33,7 |
8 a 10 anos | 15,6 | 11,2 | 10,5 | 15,3 | 11,5 | 11,5 |
11 a 14 anos | 14,4 | 6,1 | 7,1 | 16,4 | 8,2 | 9,2 |
15 ou mais anos | 6,2 | 0,9 | 1,2 | 5,9 | 1,1 | 1,4 |
Total | 100 | 100 | 100 | 100 | 100 | 100 |
Fonte: PNAD, 1996. Tabulação de Nelson do Valle Silva/ IUPERJ.
O ensino público
é sabidamente inferior ao ensino particular, sendo este acessível
na maioria a alunos brancos. Em grande parte, a deterioração da
qualidade do ensino público foi obra do regime militar de 1964-85. Os
efeitos de suas políticas de ensino perduraram mais que a própria
ditadura. Esta, onde não destruiu o ensino público, o minou ao
entregar a educação ao lobby do setor privado com fins lucrativos.
O ensino público de qualidade, que existia antes da década dos
1970, praticamente foi erradicado. Hoje, o ensino público básico
e secundário não prepara os alunos para a universidade, enquanto
o ensino superior público, gratuito, está acessível quase
exclusivamente à elite minoritária que pode pagar as mensalidades
extremamente caras da rede particular do primeiro e segundo grau.
Aliás, excluindo a menção de indianos e do ensino "excelente" (mesmo o melhor padrão de ensino no Brasil não chega a ser excelente), a seguinte descrição do sistema de ensino sul-africano feita por nosso colega Wilmot James (1999) bem poderia ter sido escrita sobre o do Brasil:
... um sistema de ensino que luta para matricular todos os alunos que têm direito, não consegue reter a maioria até o nível secundário, e lhe oferece uma qualidade de ensino que varia do excelente (para uma minoria) ao abismal (para a maioria). A conseqüência é uma pirâmide racial de resultados educacionais. [...] A rápida expansão do envolvimento de africanos no ensino superior significa sua matrícula nas direções menos técnicas, já que a maioria das escolas para alunos africanos não consegue qualificá-los na matemática e na ciência. O resultado é que a elite técnica e comercial permanece predominantemente branca e indiana.
Quanto à expectativa de vida, no Brasil é mais curta entre os negros que entre os brancos, mesmo levando em conta as diferenças de renda e níveis de educação (Tabelas 15 e 16). Embora sejam grandes as diferenças nas taxas de mortalidade infantil e de crianças até cinco anos, essas taxas são sensivelmente mais altas entre os negros de todas as regiões (Tabela 17). Talvez mais expressivas sejam as dessemelhanças raciais nas condições de vida (esgoto, coleta de lixo, água encanada) mostradas nas Tabelas 18 e 19: mais uma vez, as diferenças raciais prevalecem acima das nítidas desigualdades entre as regiões.
Tabela 15: Expectativa
de vida ao nascer, por raça. *
1940/50 | 1970/80 | |
Brancos | 47,5 | 66,1 |
Não-Brancos | 40 | 59,4 |
Fonte: PNAD, 1990. Tabulação de Singer, 1995, apud. Bento, 1998: 61.
Tabela 16: Expectativa
de vida ao nascer, por raça, renda e educação, 1996.
Renda | Educação | |||
Níveis mais baixos | Níveis mais altos | 1-4 anos | 4 anos ou mais | |
Broncos | 59,5 | 70,4 | 66,2 | 72,3 |
Não-Brancos | 55,8 | 63,7 | 62,2 | 66,6 |
Fonte: PNAD, 1990. Tabulação de Singer, 1995, apud. Bento, 1998: 61.
Tabela 17: Mortalidade
infantil e mortalidade de crianças com menos de 5 anos* por gênero
e raça, 1996.
Mortalidade infantil por 1000 | Mortalidade de crianças com menos de 5 anos | |||
Masc. | Fem. | Masc. | Fem. | |
Brasil | 48,0 | 36,4 | 65,5 | 49,7 |
Norte Urbano** | 45,2 | 34,6 | -- | 41,6 |
Nordeste | 71,7 | 60,8 | 105,7 | 33,5 |
Sudeste | 27,7 | 17,2 | 41,4 | 74,8 |
Sul | 25,2 | 14,8 | 36,2 | 50,0 |
Centro-Oeste | 29,5 | 19,3 | 46,1 | 35,1 |
Taxa de mortalidade infantil por 1000 | Taxa de mortalidade de crianças até 5 anos/ 1000 | |||
Branca | Negra (Preta/ Parda) |
Branca | Negra (Preta/ Parda) |
|
Brasil | 37,3 | 62,3 | 45,7 | 76,1 |
Norte urbano ** | - | - | - | - |
Nordeste | 68 | 96,3 | 82,8 | 102,1 |
Sudeste | 25,1 | 43,1 | 30,9 | 52,7 |
Sul | 28,3 | 38,9 | 34,8 | 47,7 |
Centro-Oeste | 27,8 | 42,0 | 31,1 | 51,4 |
Fonte: PNAD, 1996.
*Estimativas de 1993.
**Excluindo o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará
and Amapá.
Tabela 18: Saneamento
por raça dos chefes de família, 1996 (Percentagens).
Água tratada | Esgoto* | |||
Branca | Negra (Preto/Pardo) |
Branca | Negra (Preto/Pardo) |
|
Brasil | 81,0 | 64,7 | 73,6 | 49,7 |
Norte urbano ** | 63,0 | 54,8 | 56,5 | 41,6 |
Nordeste | 64,2 | 52,6 | 47,0 | 33,5 |
Sudeste | 89,1 | 52,6 | 86,8 | 74,8 |
Sul | 77,0 | 52,6 | 69,2 | 50,0 |
Centro-Oeste | 72,0 | 76,8 | 43,6 | 35,1 |
Fonte: PNAD, 1996.
* Sistema de coleta de esgoto ou fossa.
** Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima,
Pará and Amapá.
Tabela 19: Proporção de habitantes com infraestrutura de moradia, por raça.
Cor | ||||
Proporção de habitantes com: | Branca | Preta | Parda | Total |
Coleta de lixo doméstico | 70,8 | 53,1 | 47,8 | 61,0 |
Água encanada | 84,2 | 61,6 | 56,1 | 72,1 |
Energia elétrica | 92,1 | 81,8 | 78,0 | 86,1 |
Casas rústicas, com um quarto ou cômodo | 3,2 | 11,9 | 11,6 | 7,0 |
Geladeira | 81,0 | 58,5 | 54,1 | 69,4 |
Televisão | 82,9 | 64,1 | 59,4 | 72,8 |
Fonte: PNAD, 1996. Agradecimentos a Nelson do Valle Silva/ IUPERJ.
Os currículos
escolares e a literatura didática geralmente retratam um Brasil branco,
omitindo ou distorcendo a história e a cultura da população
majoritária de afro-brasileiros. Da mesma forma, a mídia divulga
a imagem de um Brasil que parece escandinavo, apesar do fato da maioria de sua
população ter ascendência africana. Quando aparecem os afro-brasileiros
nessa mídia, em geral são estereotipados em posições
subordinadas, e as imagens publicitárias com conotações
racistas têm sido denunciadas com freqüência nos últimos
anos.
A discriminação
através do estereótipo é muito concreta na vida afro-brasileira,
sobretudo na forma da repressão policial. O negro é "suspeito"
notório, e a prisão arbitrária é experiência
não apenas de cidadãos negros como em também de diplomatas
africanos confundidos por "negros metidos a besta" cujos carros luxuosos
só podem ser roubados. As condenações são mais freqüentes
entre os acusados negros, e esta é apenas uma das inúmeras formas
de discriminação no sistema judiciário (Oliveira et. al.,
1998). A invasão pela polícia dos lares favelados e a agressão
contra seus habitantes constituem procedimentos rotineiros; são comuns
as mortes e os ferimentos de moradores inocentes. A violência contra crianças
e adolescentes, reconhecida internacionalmente após os massacres de Candelária
e Vigário Geral, vitimiza os afro-brasileiros em mais de 80% dos casos
(CEAP, 1991).
Embora negado com indignação em discussões cotidianas,
a discriminação no emprego e na remuneração é
uma realidade bem documentada (PNDH, 1998; Nascimento, 1997-99). Outros tipos
de discriminação perseguem os negros brasileiros no seu cotidiano
como nas sociedades segregadas. Uma das formas mais recentes ocorre nos bancos,
onde os detetores de metal que bloqueiam automaticamente as portas não
são desativados para deixar entrar clientes negros em situações
onde brancos seriam admitidos rotineiramente. Também são freqüentes
as acusações infundadas de furto e as exigências excepcionalmente
rigorosas de identificação e documentação de clientes
afro-brasileiros que pagam com cheque.
Raízes históricas
da desigualdade
O começo do Brasil moderno está no mesmo processo que trouxe
ao mundo países como os Estados Unidos e a África do Sul: a expansão
estonteante da Europa do século XV afora, navegadores portugueses à
frente, determinados a arrancar das terras de povos nativos o exclusivo domínio
sobre as riquezas e as fêmeas do mundo. Os conquistadores portugueses
e espanhóis se preocupavam menos em estabelecer moradia na terra nova
do que em transferir sua riqueza para a Europa. Assim, o estupro sistemático
das mulheres negras e indígenas foi um fato tão básico
à estruturação dessas sociedades como a subordinação
das mulheres brancas. Desde o início, a dívida externa e o modelo
de produção baseado na monocultura e na extração
mineral para exportação fixaram o tom das políticas macroeconômicas
que consistentemente vêm sangrando o Brasil de forma sistemática
até hoje.
Talvez a diferença
mais marcante da presença histórica e contemporânea dos
africanos no Brasil quando comparada aos Estados Unidos seja que durante toda
a sua história, como no regime de colonos minoritários da África
do Sul, os africanos e seus descendentes vêm constituindo a maioria da
população. A América Central e do Sul como um todo, aliás,
tem população majoritária de ascendência indígena
e/ ou africana, fato que coloca em cena o primeiro passo ágil da dança
de decepção, pois o título "América Latina"
trai a imposição, em grande parte através de meios violentos,
de uma identidade européia sobre povos não latinos. Sua pirueta
companheira, a noção da "descoberta" aplicada a uma
terra de civilizações avançadas habitada por milênios,
lembra o processo de genocídio desencadeado contra esses povos durante
séculos. Desse processo emergiu uma América que é "Latina"
apenas à medida em que suas elites minoritárias brancas têm
conseguido suprimir a identidade de seus povos.
A importação
de africanos às colônias espanhóis e portuguesas teve início
muito mais cedo do que nos Estados Unidos. Entre 1502 e 1870, a América
Central e do Sul importaram 5,3 milhões de africanos escravizados, o
Brasil dando conta de 3,6 milhões, enquanto no mesmo período foram
levados uns 450.000 africanos aos Estados Unidos (Chiavenato, 1980). A proximidade
do Brasil à África implicou em preços tão baixos
que ficava mais rentável comprar um africano novo do que preservar a
saúde de um escravo. Os africanos duravam, em geral, por volta de sete
anos, sendo substituídos logo depois. Tal procedimento não seria
econômico nos Estados Unidos. A imagem sulista norteamericana das cabanas
de famílias escravizadas contrasta nitidamente com o a senzala brasileira,
que mais parecia um navio negreiro em terra, abrigando centenas de uma vez.
O Brasil foi o último
país cristão no mundo a abolir a escravidão, em 1888. Nenhuma
medida foi tomada para integrar os novos cidadãos afrodescendentes à
economia ou à sociedade nacional. Muitos ficaram nas fazendas, na condição
de semi-escravos, ou se mudaram das senzalas para os morros urbanos, assim formando
as favelas. Alguma destas têm raízes anteriores como quilombos.
Santos (1994, 1996) demonstra de forma convincente que a natureza da abolição
da escravidão no Brasil foi o componente essencial a determinar a natureza
circular da cadeia de fatores interligados que causam e caracterizam a exclusão
histórica dos afro-brasileiros.
Durante os períodos colonialista e abolicionista, a maioria não-latina
da América Central e do Sul era geralmente da ordem de três quintos
a dois terços. Em 1872, no Brasil os negros eram 6,1 milhões contra
3,7 milhões de brancos. A abolição causou um verdadeiro
pânico à elite dominante, que se apressou a construir políticas
públicas destinadas a apagar a "mancha negra" e a "purificar
o estoque racial da nação". O objetivo anunciado pelo delegado
brasileiro ao Congresso Universal das Raças em Londres, em 1911, foi
o de eliminar os descendentes africanos até o ano 2012 (Skidmore, 1974:
66). A subordinação da mulher, tanto a branca como a negra, constituía
ponto chave dessa ordem de planejamento político.
Tais políticas
tinham duas pedras fundamentais: a imigração européia em
massa, subsidiada pelo estado, sob legislação que excluía
as raças não desejáveis; e o cultivo do ideal do embranquecimento
com base na subordinação da mulher e no lema "casar com branco
para melhorar a raça". Nesse particular, a política da decepção
se destaca em nítido relevo, e o maior exemplo desse fato na área
da pesquisa acadêmica está no fato de que a imigração
européia era tida, até muito recentemente, por respeitados analistas
(e.g. Prado Jr., 1966), como imperativo de uma suposta "falta de mão
de obra qualificada" para competir na nascente economia industrial. A ciência
social, como a sociedade, simplesmente eliminou do mercado de trabalho a população
majoritária de afro-brasileiros emancipados que, escravizados ou livres,
haviam sido os responsáveis não apenas por trabalho altamente
sofisticado como "qualificados" para operar cada mudança tecnológica
até então introduzida na economia brasileira. O fato é
que os empregos agora seriam destinados aos "mais desejáveis"
europeus, cuja vinda subsidiada tinha o objetivo de contribuir para a "melhoria",
ou seja, o embranquecimento, da identidade racial brasileira (Skidmore, 1974).
A população
majoritária de ascendência africana incorporava uma ameaça
potencial ao poder político da elite minoritária, e o medo diante
dessa ameaça traduzia-se no discurso da unidade nacional. Mesclado às
noções do racismo pseudo-científico, esse discurso fixou
a africanidade e a negritude como anti-brasileiras. Embora nunca houvesse existido
um Brasil sem os africanos, estes foram transformados em estrangeiros por uma
definição quase exclusivamente européia da "identidade
nacional".
Entre 1890 e 1914, mais
de 1,5 milhões de europeus chegaram apenas no Estado de São Paulo,
64% com a passagem paga pelo governo estadual (Andrews, 1991). No entanto, estigmatizados
não apenas como desqualificados mas também como perigosos e desordeiros
, os homens negros foram praticamente excluídos do novo mercado de trabalho
industrial. As mulheres afro-brasileiras foram trabalhar a troco de migalhas
- quando recebiam algo além de casa e comida - como cozinheiras, babás,
e lavadeiras. Outras ganhavam a vida como vendedoras de rua. Foram as comunidades
religiosas afro-brasileiras, na maioria das vezes sob a liderança de
mulheres, que apesar da perseguição policial possibilitaram ao
povo afrodescendente, nessas condições, a sobrevivência
e o desenvolvimento humano.
Assim, de forma resumida, é o pano de fundo histórico das agudas
desigualdades de renda, emprego, habitação e outras que atingem
os afrodescendentes hoje no Brasil. Embora não caracterizada de forma
geral por estatuto legal - embora várias leis estabeleceram explicitamente
políticas racistas, a começar pela inscrição da
eugenia na Constituição brasileira de 1934 - essas desigualdades
constituem nitidamente uma hirta realidade de segregação de fato.
O embranquecimento,
a demografia e as classificações de cor
No Brasil, como em toda a América "Latina", a cultura do
embranquecimento ou blanqueamento, fundamentada na subordinação
da mulher, constitui uma coreografia que conduz o balé da mestiçagem
(mestizaje) em intricados passos em torno da convicção de que
as elites ibéricas criaram uma forma cordial e harmoniosa de relações
raciais. Dois corolários se associam intimamente a essa noção:
que a escravidão foi uma instituição mais benevolente,
e que a ausência de segregação racial por lei, junto com
a garantia constitucional da igualdade perante a lei, bastava para caracterizar
a sociedade como não racista. Ambas idéias têm tido um impacto
pesadíssimo não apenas sobre a consciência popular brasileira
como também sobre a imagem do país no exterior.
A própria existência
da população mestiça é tida como garantia final
contra a existência da discriminação racial, em contraste
a países "realmente racistas" como os Estados Unidos e a África
do Sul, onde os bailarinos do balé da democracia racial acreditam que
não exista a mistura de raças. Alegações historicamente
infundadas e auto-elogiosas, tradicionais e caras à elite, no sentido
de que a miscigenação baseava-se no casamento ou nas relações
sexuais cordiais entre as raças já foram desmascaradas por escritores
afrodescendentes que demonstram ter sido - e ainda ser - uma função
da subordinação das mulheres negras desde os tempos coloniais.
Nascimento, 1977, 1978, 1980; Carneiro, 1997; Sant'Anna, 1998; Gilliam, 1998.
Sendo o objetivo do colonialismo ibérico o de extrair a riqueza e não
de construir uma pátria, mulheres brancas não eram trazidas, inicialmente,
da Europa. As mulheres africanas passaram à condição de
permanente e obrigatoriamente disponível propriedade sexual dos senhores
brancos, talvez em maior número mas em outros aspectos exatamente da
mesma forma que o eram nos regimes segregacionistas de colonos brancos como
aqueles dos Estados Unidos e da África do Sul.
A noção das relações harmoniosas dentro de um sistema escravista benevolente não deixa de exibir suas semelhanças com o retrato rosado do sul escravista dos Estados Unidos antes da Guerra Civil que consta dos familiares clássicos da literatura e do cinema hollywoodiano. Mas o sabor latino do machismo marca profundamente essa ideologia, como ilustra a doce versão da miscigenação apresentada por Pierre Verger (1977: 10) quando descreve como os filhos brancos dos fazendeiros
... andavam pelo eito junto com os negrinhos que serviam-lhes recebendo o castigo no seu lugar mas também como colegas de brincadeira e de escola. Eles adotaram reações e padrões de comportamento africanos. Mais tarde, eles teriam sua iniciação sexual com as meninas de cor que trabalhavam na casa grande ou no eito, assim infundindo elementos de atração sensual e de compreensão mútua nas suas relações com aquilo que escolhemos chamar pessoas de diferentes raças.
O abuso sexual contra as mulheres subjugadas é uma questão de dominação, seja na guerra (desde Átila, o Huno e as legiões romanas até Bósnia e Kosovo), seja na manutenção dos regimes coloniais ou autoritários. A miscigenação enquanto fruto desse abuso pouco transmite sobre a compreensão ou atração entre seres humanos, mas fala eloqüentemente sobre o controle violento das mulheres. O gênio da ideologia brasileira foi o de fazer dessa violência o cerne de um discurso auto-elogioso em que a elite branca se purga de qualquer responsabilidade ou culpa por seus excessos de opressão. Gilberto Freyre (1940, 1946) é o mestre desse discurso: descreve graficamente, em minuciosos detalhes, os horrores da tortura e das injustiças cometidas contra os africanos escravizados, e depois conclui deixando pérolas como a seguinte a brilhar contra o pano de fundo da desigualdade no Brasil:
O cruzamento tão largamente praticado aqui corrigia a distância social que de outra forma teria permanecido imensa entre a casa grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravista produziu em termos de aristocratização, dividindo a sociedade brasileira em classes de senhores e escravos, [...] foi em grande parte neutralizado pelo efeito social da miscigenação. As mulheres índias e africanas, de início, depois as mulatas, as mais claras, as oitavas e assim por diante, tornando-se domésticas, concubinas e até mesmo esposas legítimas dos senhores brancos, desempenharam papel poderoso na democratização social do Brasil.
Tais idéias são
intrincadamente combinadas com uma hierarquia de cor que já foi definida
por intelectuais afro-americanos da região como pigmentocracia , em que
a pele mais clara é identificada com maior prestígio e posição
econômica. Constitui motivo de avanço na hierarquia social não
apenas "melhorar a raça", como também rejeitar a identidade
africana e assumir os valores culturais e os critérios de beleza pessoal
europeus.
Central a essa questão
são as minúcias do discurso sobre a mulata, cuja imagem como padrão
de beleza no retrato rosado da sociedade não racista tem sido redondamente
denunciada como uma cortina de fumaça e uma racionalização
da exploração sexual (Nascimento, 1978; Ramos-Bennett, 1995; Gilliam
e Gilliam, 1996; Gilliam, 1998). O ideal estético de beleza pessoal que
prevalece no Brasil é o da loura de olhos azuis , que em contraste com
a mulata não é estereotipada como fácil ou quente. Não
é à toa que se diz "Branca para casar, negra para trabalhar,
mulata para fornicar".
A compulsão social da brancura constitui herança comum aos regimes coloniais, e os problemas psicológicos que a acompanham têm sido revelados desde há muito por analistas como Frantz Fanon (1967) e Albert Memmi (1965). O que diferencia a nossa dança da decepção é que, em vez de ser visto como uma das muitas faces do supremacismo branco ou como legado do colonialismo, essa compulsão da brancura é apresentada como prova positiva do anti-racismo latino. O seguinte exemplo (Diegues Jr., 1977) expressa bem o esforço da elite dirigente no sentido de apresentar o Brasil como um país branco a despeito da realidade dos fatos demográficos:
... é evidente a predominância do contingente branco [da população brasileira], já que no Brasil até mesmo aqueles de raça mista que têm uma quantidade grande ou pequena de sangue negro ou índio, mas sem os traços físicos de um desses grupos, são considerados brancos. O que demonstra a ausência de qualquer discriminação de natureza racial, em termos da origem étnica da pessoa.
Nas ciências sociais
brasileiras, vastas reservas de energia têm sido e ainda são dedicadas
a esta última hipótese, de que exista uma diferença essencial
entre a rejeição da aparência africana e a rejeição
da origem africana. O critério da hipodescendência é considerado
racista, enquanto o "preconceito de marca", o critério de cor
da pigmentocracia baseado na aparência, é visto como arbitrário
e inocente, uma antipatia puramente estética ao fenótipo mais
escuro (Nogueira, 1955, 1959). Executando mais um arabesco na dança de
decepção, os teóricos desassociam o fenótipo africano
da origem africana e concluem que os latinos desenvolveram uma forma "mais
benigna" de preconceito, de natureza não racial.
A ideologia do embranquecimento conseguiu tornar os critérios demográficos
uma bagunça geral ao pressionar os entrevistados dos censos a situar-se
nas mais claras entre as três categorias oficiais de cor: branca, preta
ou parda. É notória a subestimação do número
de afro-brasileiros no processo oficial dos censos, observada tanto por demógrafos
como por cidadãos preocupados com as políticas públicas.
Os demógrafos também reconhecem a distorção das
estatísticas oficiais, em que "... o grupo preto perde muito, o
grupo pardo ganha muito mais do que perde, e o grupo branco ganha bastante sem
perder nada" (Mortara, 1970: 458). Em 1989-90, importantes entidades da
comunidade afro-brasileira lançaram a campanha "Não deixe
sua cor passar em branco" com o objetivo de incentivar os negros a identificar-se
como tal diante do Censo. Se as estatísticas oficiais situam a população
negra como aproximadamente 48% da população, as estimativas que
levam em conta a distorção resultante do efeito da ideologia do
embranquecimento são mais perto de 70% ou 80%, certamente a ampla maioria
da população.
A categoria parda, uma
espécie de "abrange tudo" utilizado desde 1940 para acomodar
as classificações extremamente subjetivas utilizadas pelos brasileiros,
é reconhecidamente desajeitada e artificial. Entretanto, quando os respondentes
se classificaram de forma espontânea no PNAD de 1976, o resultado foi
a citação de 136 categorias diferentes de cores, refletindo o
esforço dos mais claros no sentido de não serem classificados
nas mesmas categorias que aqueles mais escuros (Vieira, 1995: 27).
Sem dúvida, entretanto,
a hegemonia pertence ao "moreno", um termo que dá plena vigência
às divagações subjetivas da consciência brasileira
de cor. Pode ser usado para descrever pessoas muito negras ou mestiços
bastante claros, dependendo da conclusão que se quer chegar. Geralmente,
entretanto, a conclusão desejada é evitar dizer "negro",
"preto" ou "escuro", mesmo se a pessoa pode perfeitamente
ser identificada como pertencendo a uma gama de variações de cor
indicativa de sua origem africana.
Assim chegamos à
verdadeira natureza da grande quantidade de designações de cores:
o eufemismo. A carga pejorativa de palavras como "negro", "preto"
e "escuro" faz com que qualquer uma dessas expressões seja
tradicionalmente um insulto; assim gasta-se considerável esforço
para evitá-las educadamente. Por outro lado, a noção geralmente
pejorativa da africanidade é cuidadosamente extirpada da identidade nacional
brasileira, com exceção de algumas instâncias muito específicas
como a música, a culinária, o folclore e os esportes, onde é
definida em grande parte por aqueles que não a criaram e onde é
exibida como "prova" da harmonia racial e da tolerância da diversidade.
Já que a identidade africana continua a ser vagamente considerada uma
ameaça à unidade nacional, as expressões intimamente associadas
à africanidade são evitadas, em parte como uma questão
de lealdade de cidadania , e assistimos aos freqüentes protestos de que
alguém não é negro nem afrodescendente nem de origem africana,
mas brasileiro.
Vozes e perspectivas
Uma importante conseqüência da discriminação de fato
num contexto marcado pela dança da decepção é que
os excluídos perdem a sua voz. Aliás, se consideramos que o racismo
não existe, com que legitimidade poderiam as suas vítimas levantar
a voz? Assim, os brancos assumem a condição de porta-vozes dos
interesses do negro, a sociedade lhes confere a legitimidade de falar por ele,
e quem lança o desafio a esse procedimento é acusado de atitude
de racismo às avessas.
O seguinte diálogo
ilustrativo (Cadernos Brasileiros, 1968: 70-72, ênfase nossa) foi travado
entre o presente autor e Clarival do Prado Valladares, integrante da elite branca
baiana que em 1966 representou o Brasil no 1o Festival Internacional de Artes
Negras, em Dacar, e que na ocasião era membro do Conselho Federal de
Cultura e moderador do painel sobre a abolição da escravatura
no contexto do qual o intercâmbio teve lugar:
Nascimento: Nós vemos, por exemplo, que a tábua de valores atual não é favorável ao negro. Por exemplo, não vemos um representante negro da cultura afro-brasileira no Conselho Federal de Cultura.
Valladares: Mas o senhor vê no Conselho Federal de Cultura homens muito preocupados com a cultura negra no Brasil, autores de obras definitivas.
N: Perfeito, mas acho que o negro também tem direito, ele mesmo, de advogar os seus problemas.
V: O negro no Brasil não se representa só pelo pigmento, o negro no Brasil é Brasil. [...] Creio que tenho, mais que os mais pigmentados, a consciência de um Brasil com os seus valores negros. [...] se o Conselho Federal de Cultura não tem caracteristicamente um negro pela epiderme, tem alguém que vela pela cultura negra com muito zelo.
N: Perfeito. Acho formidável e agradeço, mas isso justamente comprova o eterno paternalismo instalado na civilização brasileira. Não estou dizendo a de V. Excita., nem a dos conselheiros, estou mostrando é o eterno processo brasileiro.
Que esta questão
não pertence a um passado recente porém obsoleto foi ilustrado
de forma gráfica em 1996, quando o Ministério da Justiça
patrocinou um evento importante sobre ação afirmativa. Nas sessões
plenárias, os brasileiros especialistas em relações raciais,
quase todos brancos, e os estudiosos afro-americanos de ação afirmativa,
vindos dos Estados Unidos, foram convidados a apresentar suas contribuições.
Alguns dos afro-americanos (Gilliam, 1998) se sentiram incomodados ao dividir
a mesa com autores de teses publicamente contestadas por aqueles que quase exclusivamente
compunham a platéia bastante numerosa do evento: os intelectuais e ativistas
do movimento negro. O proeminente antropólogo Roberto da Matta, por exemplo,
dirigiu-se a essa platéia e declarou que a democracia racial, apesar
de não ser plenamente realizada, era "uma idéia generosa...
afinal, todos nós temos, desde a infância, pelo menos um amigo
negro cujo carinho cultivamos a vida toda." A platéia bem podia
perguntar "todos quem, cara pálida?", pois a afirmação
de Da Matta constitui uma nítida expressão da identidade racial
implicitamente assumida pelos porta-vozes da "sociedade brasileira"
ao considerar as questões de raça, sobretudo ao falar desde as
elevadas alturas da autoridade acadêmica. A identidade branca é,
afinal, a marca da autoridade acadêmica e social.
Como observa o professor
ganense Anani Dzidzienyo (1995: 355, ênfase nossa): "O sucesso da
luta [afro-brasileira] depende em última instância da legitimação
de uma perspectiva negra no discurso nacional público."
Reparações ao registro
Apesar dessa característica própria às relações
raciais encenadas no palco da dança da decepção, nunca
foi silenciada a voz afro-brasileira. A história da luta dos africanos
pela liberdade e contra a discriminação no Brasil é intensa
e extensa, cobrindo todo o território e toda a história nacionais
, embora excluída das versões convencionais ainda ensinadas nas
escolas da nação. Embora o presente ensaio não seja o lugar
adequado para documentar essa história , algumas reparações
seriam oportunas no sentido de ajudar a restaurar o equilíbrio em favor
da voz afro-brasileira.
Com toda a tendência
de invocar a "questão social" ou o critério da cor,
a questão racial é primordial para os afrodescendentes, pois o
impacto da discriminação de fato ou de cor sobre as suas condições
de vida é equivalente ao da discriminação de jure ou racial.
Mais importante, como observa Dzidzienyo (1995: 345): "as relações raciais... só podem ser compreendidas no contexto das relações de poder envolvidas. Aliás, é precisamente a dimensão do poder e da sua distribuição desigual que enquadra as relações raciais em todas as Américas." Os ganhos conquistados pelo movimento afro-brasileiro no contexto das relações de poder constituem a matéria da próxima parte deste ensaio, em que nos é solicitado considerar fatos e tendências recentes.
Perspectivas novas
Ao considerar as tendências recentes, destacam-se três fatos maiores.
Talvez o ganho mais destacado do movimento negro tem sido a progressiva legitimação
de sua perspectiva, a saber: de que a questão racial constitui uma questão
nacional de cidadania que exige a articulação de políticas
públicas específicas. Em segundo lugar, embora ainda muito longe
de ser proporcional à sua participação na população,
a presença afro-brasileira nas posições de poder, por eleição
ou nomeação, vêm aumentando. Terceiro, o racismo é
visto cada vez mais como um assunto dos direitos humanos.
Diferente dos Estados
Unidos e da África do Sul, onde a opressão racial explícita
deu legitimidade às lutas organizadas dos negros, a ideologia da democracia
racial tende insidiosamente a privar o povo dominado de sua base de autodefesa
e auto-elevação coletivas. Não existiu no Brasil uma tradição
de movimentos de direitos civis integrados por negros e brancos. Esse fato foi
exacerbado por dois períodos de regimes autoritários (1937-45
e 1964-85) durante os quais os líderes de esquerda, a maioria brancos,
ao lutar para superar os regimes militares viam na questão racial não
apenas a última possível prioridade de luta como uma ameaça
à unidade das forças democráticas.
Em 1937, a Frente Negra
Brasileira, movimento anti-discriminatório de massa com sua maior base
em São Paulo, foi fechado junto com todos os partidos políticos
e banido pelo Estado Novo num contexto de censura e repressão. Na década
de 1960, enquanto nos Estados Unidos implementavam-se programas contra a pobreza
como resposta, em grande parte, ao movimento de direitos civis - movimento integrado
sob a liderança da comunidade negra - , a ditadura militar brasileira
se ocupava com a implantação de políticas que concentravam
cada vez mais a riqueza, aumentando a desigualdade, ao mesmo tempo que desencadeava
uma repressão brutal contra as forças de oposição.
O Congresso foi fechado em 1968; muitos líderes políticos de esquerda
foram exilados; a questão racial foi definida como assunto de segurança
nacional, a discussão do qual era proibido por decreto-lei.
Durante os dois maiores
períodos de reorganização da democracia brasileira (1945-50
e 1977-85), os movimentos afro-brasileiros eram ativos, embora ainda solitários,
nas suas campanhas por medidas e políticas capazes de combater o racismo.
À medida que a ditadura do Estado Novo cedeu à Assembléia
Nacional Constituinte de 1946, as organizações negras propuseram,
sem sucesso, a inclusão na nova carta nacional de medidas anti-racistas
(Nascimento e Larkin-Nascimento, 1992, 1998). Na década dos 1970, entidades
afro-brasileiras proliferaram em todo o país. Entretanto, apenas muito
recentemente, nas décadas de 1980 e 1990, essas entidades vêm encontrando
um apoio mais sólido entre aliados de outros movimentos sociais.
O movimento feminista
é um exemplo. Lélia González (1986) e outras mulheres afro-brasileiras
registraram suas experiências na década dos 1970 com um movimento
feminista em grande parte insensível à questão racial.
No ponto de vista delas, o feminismo representava as questões de mulheres
brancas cuja libertação se baseava em grande parte na disponibilidade
de uma mão de obra doméstica sub-remunerada, em sua maioria composta
de mulheres negras. Embora seja inegável o papel do movimento feminista
no sentido de criar espaços políticos que possibilitassem o exercício
da diversidade, também é fato que muitas mulheres afro-brasileiras
desenvolveram sua militância em primeiro lugar dentro do movimento negro,
onde suas questões específicas enquanto mulheres as levaram a
organizar-se independentemente. Com base nessa organização, desenvolveu-se
um novo e mais rico encontro entre o movimento feminista e as entidades organizadas
de mulheres negras. Em 1995, mulheres afro-brasileiras formaram uma parte visível
da delegação brasileira à Conferência Mundial de
Mulheres em Beijing. Recentemente, os Conselhos dos Direitos da Mulher a nível
municipal, estadual e federal têm sido criados como resultado da mobilização
das mulheres, trazendo à cena a proposta de políticas públicas
voltadas à questão de gênero. Hoje podemos testemunhar um
lento progresso das mulheres negras na direção de sua inclusão
numa representação quase inteiramente branca nesses Conselhos;
entretanto, sua presença ainda está longe de ser proporcional
à sua participação na população feminina.
Contudo, suas preocupações estão sendo reconhecidas como
necessidades específicas legítimas, não apenas nos Conselhos
como no movimento de mulheres como um todo.
O levantar da voz afro-brasileira
acompanhou-se da auto-definição. As designações
de cores foram progressivamente substituídas por termos que unem em vez
de dividir, como "afro-brasileiro", "negro" e "afrodescendente".
O movimento negro e seus aliados instituíram a convenção
de usar-se a soma das categorias oficiais de cor "preta" e "parda"
para quantificar a população negra. Deixando de lado os resquícios
de fascinação acadêmica com as categorias de cor, os afrodescendentes
no Brasil escolheram o próprio nome e procederam a tarefas mais importantes.
Entre os fenômenos
recentes, destaca-se a emergência de um movimento afro-brasileiro composto
de ONGs e de líderes comunitários ativamente engajados nos sindicatos,
nos partidos políticos, nas igrejas cristãs, nas comunidades-terreiros,
nas organizações culturais, e assim por diante. Levando a questão
racial a cada contexto, muitas vezes enfrentando oposição e hostilidade
ou indiferença, e de forma mais freqüente ainda recebendo declarações
de solidariedade que não se traduzem em práticas concretas, com
o tempo o movimento negro ganhou aliados e consciências. Talvez a mais
visível expressão dessa tendência tenha sido a efetiva substituição
do 13 de maio, aniversário da abolição da escravatura,
pelo 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi ao defender a República
de Palmares, como dia nacional de comemoração afro-brasileira.
Desde a década dos 1980, o país passou lentamente a seguir a liderança
do movimento negro nesse assunto; hoje, a mídia, as escolas públicas
e particulares, as instituições culturais e organizações
comunitárias agregam-se à celebração do 20 de novembro
como Dia Nacional da Consciência Negra, uma mudança que demonstra
o poder da voz afro-brasileira unida.
Talvez o mais importante
movimento social dos anos recentes seja o Movimento dos Sem Terra (MST). A despeito
de sua fama como fenômeno recente, o MST traz à tona uma questão
que mobilizou a população no início da década de
1960, durante a presidência de João Goulart , como uma das tão
desejadas reformas de base. Surgiu no sul do país o Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra, ligado ao antigo PTB, que exigia uma reforma agrária que hoje,
quarenta anos mais tarde, ainda constitui reconhecida necessidade que impõe-se
como mais que urgente. Os afro-brasileiros em geral serão maioria entre
os beneficiários de uma efetiva reforma agrária, e a liderança
do MST vem reconhecendo, ao menos no discurso, a necessidade de combater o racismo.
Palmares e Zumbi figuram no elenco invocado pela liderança do MST de
modelos de luta libertária do povo brasileiro.
Além de conseguir
progressivamente desacreditar o mito da "democracia racial", que ainda
assim continua exercendo função de grande peso na consciência
nacional, o movimento afro-brasileiro também vem desenvolvendo ações
independentes de importante impacto. Um exemplo está nos Pré-Vestibulares
para Negros e Carentes, que existem em vários estados e municípios.
Seu objetivo é o de aumentar o acesso ao ensino superior de jovens afro-brasileiros
e pobres. Alguns desses grupos conseguiram bolsas de estudos para alunos provenientes
dos seus quadros.
A participação afro-brasileira nos corredores do poder - partidos
políticos, cargos eletivos e agências governamentais - vem crescendo
bastante. Em 1982, quando realizaram-se as primeiras eleições
legislativas diretas, o autor do presente ensaio foi o único afro-brasileiro
enviado ao Congresso com o mandato de representar essa população.
Hoje, embora não chegue perto de uma representação proporcional,
o peso da voz afro-brasileira vem aumentando com várias nomeações
administrativas, a eleição de dois governadores e uma vice-governadora,
um número sempre maior de deputados estaduais e vereadores; três
senadores e um número suficiente de deputados para reunir-se em 1997
um incipiente bloco parlamentar negro. A pressão exercida pelo movimento
negro através de seus representantes eleitos influenciou a política
externa brasileira em relação à África do Sul nas
décadas de 1980 e 1990.
Em 1982, a idéia
de políticas administrativas voltadas ao atendimento de necessidades
específicas da população afro-brasileira era vista como
fantasiosa e certamente racista. Entretanto, com a crescente e sempre mais efetiva
mobilização e presença política do movimento negro
(Nascimento, 1985) a idéia começou a evoluir. Criaram-se conselhos
consultivos e assessorias dentro da estrutura dos governos e seus órgãos
administrativos em um número cada vez maior de governos municipais e
estaduais. A nível federal, o Ministério da Cultura criou uma
Assessoria para Assuntos Afro-Brasileiros e depois uma Commissão para
o Centenário da Abolição da Escravatura (1988), e desses
órgãos nasceu a Fundação Cultural Palmares.
Já em 1988, o
Congresso Constituinte aprovou várias medidas propostas pela comunidade
afro-brasileira através de seus representantes eleitos. Entre outras,
houve a medida que estabeleceu o racismo como crime inafiançável
e imprescritível (Art. 5, para. XLII); determinou a demarcação
das terras das comunidades quilombolas contemporâneas (Art. 68, Disposições
Provisórias); anunciou a natureza pluricultural e multiétnica
do país, estabelecendo que o Estado protegeria as manifestações
da cultura afro-brasileira entre outras (Art. 215, para. 1); preservou como
patrimônio nacional os locais dos antigos quilombos e seus documentos
(Art. 216, para. 5); e determinou a inclusão das "contribuições
das diversas culturas e etnias à formação do povo brasileiro"
nas matérias de história do currículo escolar (Art. 242,
para. 1).
Desde 1988, a promulgação da lei 7.716 que define o crime do racismo,
bem como uma série de leis estaduais e municipais, muitas delas tratando
da área do ensino (Silva Jr., 1998), vêm atestando a força
crescente do movimento.
A assistência
às comunidades "remanescentes de quilombos" mencionada na Constituição
(Art. 68, Disposições Transitórias) constitui uma área
de políticas públicas que ilustra certa simbiose entre as comunidades
afro-brasileiras, o movimento negro, e a resposta governamental. Essas comunidades,
espalhadas em todo o país, sofrem de condições de vida
precárias e ameaças dos proprietários de terras vizinhas
que avançam sobre suas terras, a propriedade das quais na maioria das
vezes carece de documentação oficial. Desde que a Constituição
de 1988 incorporou essa reivindicação do movimento negro, algumas
delas ganharam a titulação de suas terras e algum tipo de assistência
(CEN, 1996: 29-31; PR, 1998: 25-28).
Em 1991, o Governador
Leonel Brizola do Estado do Rio de Janeiro inaugurou a SEAFRO , primeiro e único
órgão governamental de primeiro escalão a nível
estadual criado para tratar especificamente da articulação e implementação
de políticas públicas para a comunidade afro-brasileira. Entretanto,
e de forma previsível, surgiu oposição na Assembléia
Legislativa sob o lema do racismo às avessas. A pressão das alegações
de inconstitucionalidade do decreto administrativo que criava a Secretaria impediu
que fosse transformada em estrutura permanente, e a SEAFRO foi extinta pelo
sucessor de Brizola.
Tal fato realça
a importância histórica da criação da Secretaria
Municipal para Assuntos da Comunidade Negra de Belo Horizonte, instalada pelo
prefeito Célio de Castro em dezembro de 1998: esta foi aprovada pelo
legislativo municipal.
Somente em meados da década de 1990 a questão da ação
afirmativa chegou a ser discutida com seriedade. Sua primeira expressão
no Brasil, na forma de um projeto de lei da Ação Compensatória
apresentada à Câmara dos Deputados em 1983 (Nascimento, 1983-86,
v. 1) não obteve amplo apoio e não foi levado à votação
do plenário. Entretanto, com a legitimação da idéia
de políticas públicas específicas, a noção
da ação afirmativa também começou a ganhar terreno,
e o projeto foi reintroduzido no Senado em 1997 (Nascimento, 1997-99, v. 1).
Em 1995, a celebração
nacional e internacional do Tricentenário de Zumbi dos Palmares consolidou
a maior abrangência da capacidade de mobilização afro-brasileira,
demonstrada na Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e
pela Vida, que reuniu em Brasília entidades e militantes de todo o país.
O Comitê Executivo Nacional da marcha ao Presidente da República
um Programa para Superar o Racismo e a Desigualdade Racial; este documento ainda
expressa uma síntese básica das reivindicações da
comunidade negra (CEN, 1996). Talvez a mais alta expressão simbólica
desse momento tenha sido a inscrição do nome de Zumbi dos Palmares
na Galeria dos Heróis Nacionais, Panteão da Liberdade, Praça
dos Três Poderes, em Brasília.
A essas alturas, a discussão
e a proposição de políticas públicas anti-discriminatórias
estava na ordem do dia (Munanga, 1996). Respondendo à realização
da Marcha em Brasília e às suas reivindicações,
o Governo Federal criou um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização
da População Negra (GTI). Ao assinar o decreto que instituía
o GTI (Silva Jr., 1998: 76), o Presidente fez um pronunciamento oficial (PR,
1998) sem precedentes ao reconhecer a existência da discriminação
racial e a necessidade de medidas concretas para combatê-lo. O mandato
do GTI é o de estudar, formular, propor, discutir, a articular com os
respectivos setores governamentais medidas de políticas públicas
anti-discriminatórias executivas, legislativas e judiciais, e também
estimular tais políticas na iniciativa privada, "zelando pelo desenvolvimento
e a participação da População Negra" e "consolidando
a cidadania da População Negra".
Desprovido de recursos
e pessoal suficientes, as perspectivas de o GTI produzir resultados significativos
são dúbias, na melhor das hipóteses. Contudo, o GTI apresentou
46 propostas de ação afirmativa que estão sendo consideradas
pelo governo (PR, 1998: 62). Uma das suas funções potenciais seria
a de aumentar a gama de órgãos governamentais envolvidas em políticas
anti-discriminatórias. A Secretaria de Assuntos Estratégicas,
por exemplo, já realizou um evento sobre ação afirmativa,
e o Ministério do Exército já foi abordado no sentido de
participar do reflorestamento das terras de Palmares, outras necessidades das
comunidades quilombolas, e a demarcação de suas terras (PR, 1998:
76-77).
Entre as mais destacadas
iniciativas recentes na política governamental federal foi a criação
dentro do Ministério da Justiça do Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH), que trabalha em proximidade com o GTI e inclui nas suas Propostas
de Ação Governamental uma seção sobre a População
Negra composta de 22 objetivos de curto, médio e longo prazo (PNDH, 1998:
61). Essas propostas incluem o apoio à "discriminação
positiva" e a "políticas compensatórias" para combater
a desigualdade racial e melhorar a posição sócio-econômica
da comunidade afro-brasileira. Aliás, o GTI patrocinou uma série
de seminários sobre ação afirmativa, e o Ministério
da Justiça organizou um evento internacional também.
Que a necessidade da
ação afirmativa seja discutida dentro do governo é um grande
passo adiante. Infelizmente, o próprio Presidente tem contribuído
à predisposição geral contra a ação afirmativa
ao identificá-la exclusivamente com a política de cotas e alegar
que "implica em ignorar a avaliação do mérito"
(PR, 1998: 29-30). Essa noção, embora errônea, é
um dos fatores que mais pesam na resistência da sociedade brasileira à
política anti-discriminatória.
Importantes sindicatos
têm desempenhado um papel relevante no combate a essa resistência
ao contribuir para quebrar o tabu tradicional da esquerda segundo o qual tratar
da questão da discriminação racial seria dividir a classe
operária. Esses sindicatos vêm criando órgãos internos
cuja literatura apoia a política anti-discriminatória (CUT/ CNCDR,
1997, 1998).
Esse fato levou os sindicatos
em 1994 a comparecer diante da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), denunciando o Brasil pelo não-cumprimento da Convenção
no. 111 sobre a Discriminação no Emprego, ratificado pelo país
em 1965. Ao responder à citação, o Brasil requereu a cooperação
técnica da OIT. Em 1996, o Ministério do Trabalho instituiu um
Grupo de Trabalho pela Eliminação da Discriminação
no Emprego e na Ocupação (GTEDEO) , entidade tripartite criada
com o apoio técnico da OIT para prosseguir ao cumprimento dos compromissos
do Brasil nos termos da Convenção no. 111. Um Grupo de Trabalho
Multidisciplinar foi criado dentro do Ministério para "incorporar
a questão da discriminação às ações
e atividades rotineiras" (PNDH, 1998). Uma das importantes questões
por ele tratadas é a promoção da igualdade através
da negociação coletiva (MTb/ OIT, 1998). Até o momento,
o Grupo de Trabalho tem se limitado a promover eventos de conscientização
e discussão do assunto. Se vai ou não instituir medidas concretas
continua um item em aberto.
A inclusão de medidas para o avanço de ações contra o racismo no Programa Nacional de Direitos Humanos não apenas caracteriza a desigualdade racial como uma questão de direitos humanos, como também caracteriza a não-discriminação como um direito de cidadania. Outra expressão dessa tendência foi a criação no Governo estadual do Rio de Janeiro, em janeiro de 1999, de uma Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania com ênfase política na área da desigualdade racial.
Estratégias
e oportunidades
Ao considerar estratégias e oportunidades, dividimos a discussão
em três partes. Primeiro, consideramos o conteúdo das políticas
anti-discriminatórias no Brasil, e depois o contexto geral de políticas
em que elas se inserem. Finalmente, avaliaremos as estratégias que favorecem
a implementação efetiva da política anti-discriminatória.
1. Políticas
anti-discriminatórias: conteúdo
Os limites de espaço nos impedem de examinar em detalhe cada
proposta de políticas públicas. Entretanto, certas áreas
de ênfase são objetos de consenso geral. A primeira é a
formação (profissional, técnica e acadêmica) e a
capacitação para o trabalho anti-discriminatório. Numa
economia cada vez mais tecnológica, a discriminação no
emprego e na remuneração deve ser combatida não apenas
com programas de conscientização que trazem para a discussão
os assuntos relevantes, mas também com o treinamento, a especialização
e o desenvolvimento de habilidades. Além disso, a consolidação
dos ganhos recentes e o desenvolvimento de novas propostas para o trabalho anti-discriminatório
só serão possíveis com o treinamento e a multiplicação
de líderes e quadros competentes. Programas dessa natureza, então,
constituem importante iniciativa.
Intimamente ligado a este ponto é a segunda prioridade: a educação. A desigualdade nessa área é menos uma questão de acesso inicial à escola que dos meios para ficar nela. Assim, a luta contra o trabalho infantil é de primeira importância; esta necessidade tem sido enfrentada em algumas áreas, como Brasília, através de programas de ajuda financeira às famílias para cada criança mantida na sala de aula.
Associada e próxima
é a necessidade de educação dos jovens e adultos, para
compensar a falta de ensino no passado e para reduzir as taxas de analfabetismo.
Os esforços na educação devem também incluir o treinamento
técnico e ocupacional e o ensino de segundo e terceiro graus. Programas
específicos de preparação e admissão para a universidade
também são necessários, ampliando o alcance dos esforços
comunitários atualmente existentes, estimulando e apoiando a cooperação
entre as universidades e as ONGs. As políticas públicas devem
tratar a necessidade de acesso afro-brasileiro ao ensino superior, compensando
as perdas que resultaram da recente restrição dos benefícios
fiscais que haviam possibilitado os subsídios à matrícula
universitária conquistados pelas comunidades organizadas. Também
são de fundamental importância a revisão dos currículos,
inclusive a atuação concreta para o desenvolvimento da pedagogia
em torno dos temas transversais dos novos Parâmetros Curriculares Nacionais
(MEC, 1998), e a revisão crítica dos livros didáticos e
da literatura infanto-juvenil, projeto já iniciado pelo Ministério
da Educação.
Uma terceira prioridade é a mídia. É bem conhecido o impacto
da televisão e do rádio sobre o desenvolvimento da identidade
individual e coletiva na sociedade moderna. As tendências racistas da
programação telecomunicativa brasileira foram delineadas de forma
gráfica em 1979, quando a empresa estatal de televisão angolana
procurou uma parceria com o Brasil. O novo país africano foi obrigado
a recusar a oferta de um dos programas mais populares da televisão educativa
brasileira, baseado em um clássico de literatura infantil, O Sítio
do pica-pau amarelo do Monteiro Lobato, porque a estereotipização
racista que permeia a obra a caracterizava como imprópria para crianças
africanas. A maioria dos brasileiros estão tão acostumados a tais
estereótipos que mal conseguiam entender onde estava o problema. A pressão
do movimento negro já resultou em reformulações da programação
de algumas emissoras. A Fundação Cultural Palmares e o GTI estabeleceram
parcerias com a TVE (canal educativo) do governo federal, através da
qual produziram alguns mini-documentários e programas específicos.
A administração federal atual determinou a inclusão nas
suas imagens publicitárias de todos os grupos que compõem a população
brasileira multirracial. São necessários mais esforços
para promover a eliminação da discriminação no setor
privado de telecomunicações, onde o fantasma da censura, o poder
quase absoluto de um único monopólio de telecomunicações,
e a contínua prevalência do mito da "democracia racial"
complementada pela aversão ao "politicamente correto" têm
exacerbado um estado geral de letargia nesse sentido.
Programas específicos
de saúde dirigidos à população negra devem levar
em conta não apenas as doenças geneticamente específicas
como a anemia falciforme, mas também as que têm maior incidência
e impacto mais concentrado sobre os afro-brasileiros (mioma, hipertensão
e doenças ocupacionais). As campanhas públicas na área
da saúde, como os de AIDS e hanseníase, precisam contar com uma
articulação especificamente dirigida à população
negra, e é imperativa a necessidade de programas preventivos como esgoto
encanado, coleta de lixo e atendimento preventivo nas comunidades afro-brasileiras.
Embora a administração federal tenha dado pequenos passos nas
primeiras duas áreas através da realização de seminários
e iniciativas de capacitação de funcionários da rede de
saúde pública (PR, 1998: 62-71), a condição do sistema
público de saúde continua deplorável, e os recursos arrecadados
pelo imposto especial criado para viabilizá-lo têm sido aberta
e impunemente desviados para outros setores (ITM, 1998; Roque e Corrêa,
1998).
Na questão da violência policial, a experiência do estado
de São Paulo, e do Rio de Janeiro durante a existência da SEAFRO,
resultou na inclusão de cursos sobre a discriminação racial
e os direitos humanos nos programas de treinamento de policiais, campanhas de
esclarecimento público e a criação de delegacias especializadas
para os crimes de racismo. Este continua sendo um terreno escorregadio, já
que a instituição policial é repleta de brasileiros de
ascendência africana cuja internalização dos estereótipos
racistas é tão exacerbado a ponto de deixá-los menos sensíveis
do que hostis às questões levantadas pelas ONGs afro-brasileiras
e pelas organizações de direitos humanos (Silva, 1994).
Finalmente, a base econômica
da comunidade afro-brasileira não pode continuar a ser composta apenas
de empregos. Com exceção da região sudeste, em particular
São Paulo e em menor escala no Rio de Janeiro, quase inexistem empresas
independentes de propriedade de afro-brasileiros. É de primeira ordem
a necessidade de estimular e apoiar o fortalecimento da capacidade de construir
uma base sustentável de capital. A cooperação entre empresários
afro-brasileiros e afro-americanos constitui uma perspectiva promissora.
Existe um problema que
perpassa e recorta todas essas áreas: a necessidade de dados confiáveis
para fundamentar a formulação de políticas públicas
e a avaliação de seu impacto. A inclusão de informações
sobre raça ou cor nas certidões de nascimento e de óbito,
bem como outros documentos vitais; registros hospitalares, escolares e de outras
instituições; cadastros de empregados, documentos oficiais, e
assim por diante, constitui uma preocupação primordial (CEN, 1996;
Munanga, 1996; PNDH, 1998).
Algumas sugestões fortes estão sendo negociadas com o IBGE, que se prepara para o Censo do ano 2000 (Sant'Anna, 1998): que o item censitário da "cor" seja associado com outro sobre "origem"; que seja revista a categoria "parda" e que o termo "negro" seja utilizado para complementar as classificações por cor e origem ("preta/ negra", "negra/ africana"); que a composição racial/ étnica seja registrada na população como um todo e não apenas em amostras, como tem sido o caso até agora; e que haja um treinamento explícito dos censitários sobre como lidar com a questão racial e de cor.
2. Perspectivas
gerais de políticas públicas
Embora sejam consideráveis os avanços recentes, ainda
estão longe de serem adequados para lidar com as enormes dimensões
da desigualdade racial no Brasil. Ao avaliar estratégias, impõem-se
como básicas três questões principais. Primeiro, as limitações
da ação governamental são gigantescas, sobretudo a nível
federal. Segundo, a eficácia da parceria com a sociedade civil depende
de uma avaliação crítica por parte das ONGs e de fiscalização
por parte da cidadania do progresso e da eficácia das políticas
governamentais em todos os níveis. Terceiro, a resistência continua
muito grande na sociedade brasileira, não apenas aos programas anti-discriminatórios
como também à própria discussão do racismo como
questão social legítima. De forma mais ampla ainda, prevalece
a resistência à discussão e ação na área
dos direitos humanos em si, uma proposição geralmente identificada
com idéia de paparicar os criminosos.
Duas dimensões
interrelacionadas emergem dessas considerações: a necessidade
de fortalecer a voz das ONGs no sentido de influenciar a ação
governamental, e a necessidade de reestruturar as prioridades governamentais
no sentido de políticas efetivas para eliminar as desigualdades. A reestruturação
das políticas se impõe em duas frentes: primeiro, as políticas
de combate à fome, à miséria, às desigualdades de
renda e de condições de vida (habitação, saúde,
educação, saneamento, água encanada); segundo, as políticas
afirmativas ou específicas como aquelas discutidas na subseção
acima, tratando diretamente das desigualdades raciais em si.
O primeiro grupo de
políticas beneficiaria especificamente os afro-brasileiros, de longe
a maior parte dos pobres e necessitados. Entretanto, tem sido amplamente demonstrado
(ITM, 1998; Roque e Corrêa, 1998) que os políticas macroeconômicas
aprovadas pelo FMI e recentemente perseguidas pelo governo federal são
inteiramente inadequadas a esse objetivo. A estabilização monetária
fundamentada na manutenção das taxas de juros mais altas do mundo
(por volta de 50%); a reforma fiscal ancorada no desmantelamento geral do Estado
e na privatização de empresas estatais lucrativas sem estabelecer
critérios de regulamentação dos monopólios e oligopólios
de capital privado assim criados; os cortes nos gastos sociais e a demissão
em massa de funcionários públicos; a desnacionalização
da economia e a concentração progressiva do capital; o estímulo
às importações e desestímulo à produção
nacional; tais políticas trazem como resultados a recessão, o
desemprego, e a corrosão da capacidade nacional produtiva. Tudo isso
ocorre no contexto geral de cortes nos serviços públicos, sobretudo
os sistemas já deteriorados e sem recursos da saúde e da educação.
A arrecadação de recursos do orçamento federal é
improvisada com impostos presumidamente temporários como o CPMF , ao
passo que os recursos oficiais do orçamento são utilizados para
financiar os bancos privados falidos. As pensões e aposentadorias, cujo
valor real já havia diminuído sensivelmente, estão sendo
ainda mais oneradas e restringidas. A crise cambial de fevereiro de 1999 apenas
sublinhou a natureza artificial do tão aplaudido "sucesso"
da administração atual no combate à inflação;
já era evidente em 1997/98 que os índices gerais de desigualdades
vinham crescendo desde 1993 (Roque e Corrêa, 1998) e que essas políticas
favorecem antes o capital transacional que a empresa, a economia ou o emprego
brasileiros (Salomão e Gonçalves, 1998).
As estratégias
macroeconômicas favorecendo o crescimento não serão suficientes
para reverter essa situação; impõe-se a necessidade de
políticas de apoio à produção nacional e à
exportação. As reformas fundiária e agrária constituem
necessidades imediatas urgentes, inclusive a restrição da impunidade
na violência rural. A efetivação de programas de renda mínima
é imperativa. Desde 1991, foram introduzidos no Congresso dois projetos
de lei propondo a criação de programas de renda mínima;
nenhum chegou à votação até o momento em que redigimos
o presente texto. De oitenta programas semelhantes a nível estadual e
municipal, quatro estão sendo implementados, e apenas um deles como programa
permanente. Se as propostas de renda mínima encontram resistência,
a esperança de aprovar-se programas complementares de redistribuição
de renda, cuja necessidade está manifesta nos extremos de desigualdade
exibidos pelo Brasil, é menor ainda.
Uma medida crucial é continuar o trabalho das ONGs que estão monitorando
e fiscalizando as políticas econômicas, como por exemplo no contexto
do programa de Monitoramento do Desenvolvimento Social em associação
com as Nações Unidas (ITM, 1998).
3. Estratégias
para a implementação das políticas antidiscriminatórias
Quanto ao segundo grupo de políticas, aquelas que tratam das desigualdades
raciais propriamente ditas, o seu efeito positivo necessariamente será
limitado dentro desse contexto geral. Aliás, o PNDH (1998: 45) praticamente
admite esse fato ao anunciar que seu trabalho irá enfatizar os direitos
civis num contexto em que os direitos sociais e econômicos estão
severamente restritos pela desigualdade social e é provável que
continuem assim.
Contudo, não
podem ser ignorados os programas específicos instituídos em resposta
às reivindicações da comunidade afro-brasileira organizada
e dirigidos à política pública relativa à desigualdade
racial. Uma relação simbiótica vem se desenvolvendo entre
a ação dos militantes e ONGs afro-brasileiros de um lado, e a
articulação de políticas governamentais - mas não,
na maioria dos casos, a sua implementação - do outro. A linguagem
das medidas das instituições governamentais e das leis promulgadas
foi desenvolvida em grande parte através da influência das ONGs,
dos intelectuais e dos ativistas do movimento negro, que participam diretamente
na sua formulação ou indiretamente ao contribuir com suas ações
e seus escritos. Entretanto, a capacidade desse movimento para criar pressão
suficientemente eficaz para conduzir à aplicação concreta
das medidas, e depois para fiscalizar essa aplicação, é
gravemente limitada por falta de recursos financeiros, pessoal e infraestrutura.
A maioria dessas políticas ainda não encontraram o caminho de
sair do papel para a ação concreta.
Assim, uma estratégia
importante será a de assegurar para o movimento afro-brasileiro o peso
político suficiente para garantir a continuidade dos ganhos conquistados
na política administrativa, inclusive a manutenção e o
desenvolvimento dos órgãos e programas governamentais já
criados a nível municipal, estadual e federal ; o envolvimento de novos
recursos governamentais (infraestrutura, pessoal, setores administrativos) nos
programas anti-discriminatórios; e a colocação em prática
dos dispositivos legais. Dois desafios se apresentam nesse contexto, e são
grandes: primeiro, o de superar a resistência da sociedade à política
de direitos humanos e de ação afirmativa; segundo, conseguir prioridade
para essas políticas nas listas de tarefas das administrações
governamentais. O exemplo da Secretaria dos Assuntos da Comunidade Negra de
Belo Horizonte será fundamental nesse aspecto.
Essa estratégia deve ser acompanhada pelo fortalecimento das próprias
entidades afro-brasileiras, pois a eficácia do trabalho dos órgãos
governamentais depende da participação crítica e cooperadora
dos sindicatos, entidades profissionais, ONGs e grupos comunitários.
Estes, por sua vez, devem usar a existência dos órgãos governamentais,
e o material por eles produzido, para levar adiante o seu trabalho de legitimar
e perseguir os objetivos do movimento. Aliás, o resultado mais visível
dessas agências governamentais até hoje tem sido a produção
de material (PNDH, 1998; PR, 1998; MTb/ OIT, 1998; MEC, 1998).
Dois obstáculos
à mudança efetiva no Brasil são especialmente formidáveis.
Um é a falta de partidos políticos fortes e bem organizados capazes
de traduzir em ação executiva e legislativa as reivindicações
dos movimentos sociais que incorporam nos seus programas. A democracia no Brasil
sofre o grande entrave do poderio ainda vigente dos coronéis corruptos
e das elites entrincheiradas, sobretudo no norte, nordeste e no interior de
regiões periféricas onde está concentrada a população
afro-brasileira. O outro grande obstáculo é o progressivo desmantelamento
do Estado, que em grande parte deixa impotente ou extingui os órgãos
governamentais que poderiam ser encarregados da implementação
de políticas públicas de ação afirmativa.
O papel da legislação anti-discriminatória já foi questionado (Dzidzienyo, 1995) numa sociedade em que a existência de normas legais retóricas porém ineficazes nunca garantiu a igualdade racial. Mas as leis inscritas na nova ordem social brasileira têm um papel importante, embora sabidamente não em função de sua efetiva execução.
Elas constituem um recurso
e uma arma da sociedade civil organizada para o exercício de seu papel
fundamental de participação crítica na fiscalização
do cumprimento de dispositivos legais por ela conquistados que implicam na formulação
de políticas de estado. Além disso, a legislação
constitui importante reflexo do progresso, e instrumento para a continuação,
da tarefa de superar a resistência social à idéia da necessidade
das medidas anti-discriminatórias. O contexto internacional se destaca
como especialmente importante nesse aspecto: a ação já
visível rumo ao cumprimento da Convenção no. 111 pode ser
visto como uma espécie de modelo para a articulação de
novas iniciativas.
No final, o papel das
organizações comunitárias sem dúvida permanecerá
estrategicamente imperativo. Será, como tem sido, o próprio povo
afro-brasileiro a puxar as instituições governamentais e não
governamentais na direção de medidas para construir a igualdade.
Talvez nesse aspecto
o mito da "democracia racial" possa ser visto de forma otimista como
vantagem inicial relativa. Nas sociedades onde as vitórias de direitos
civis efetuaram mudanças nas estruturas institucionais, as dificuldades
de denunciar e combater a discriminação depois dessas mudanças
tendem a assemelhar-se àquelas enfrentadas pelo movimento afro-brasileiro
até o momento. A negação da natureza racial das desigualdades,
a apropriação pelas forças conservadoras do discurso da
igualdade, e as alegações de que a política anti-discriminatória
constitui um "racismo às avessas" são elementos que
levaram a co-autora do presente ensaio a indagar, anos atrás, se as formas
de discriminação pós-Bakke nos Estados Unidos não
aproximam o caso desse país à democracia racial brasileira (Larkin-Nascimento,
1980). Da mesma forma, a África do Sul democrática hoje enfrenta
a necessidade de políticas de estado para reverter as desigualdades raciais
de fato, não estando mais intatas as estruturas do apartheid; as reivindicações
dos excluídos são bastante urgentes. Tais situações
já são familiares aos militantes afro-brasileiros, que insistem
em inventar maneiras de ganhar terreno a despeito delas.
No Brasil, o legado da "democracia racial" produziu duas dificuldades observados hoje nos Estados Unidos por nosso colega Charles Hamilton (1999): o pesado ônus da prova da discriminação exigida para justificar ou gerar políticas públicas e a não responsabilização da sociedade branca pelo racismo do passado. Da mesma forma, o estigma cínico que Hamilton observa contra o "politicamente correto" também prevalece aqui. Na África do Sul, esses elementos podem ser contrabalançados, talvez, pela memória nítida e pela condenação internacional do apartheid, que deixariam menos campo de dúvida com respeito à necessidade da política de ação afirmativa e sua justeza básica. Mais importante, porém, é a dimensão política: como maioria eleitoral e partidária na África do Sul, os africanos estão formulando e implementando a política pública. A natureza dessa situação implica que as limitações impostas pela equação do poder político sejam menos constrangedoras do que nos Estados Unidos ou o Brasil. Assim, embora o movimento afro-brasileiro venha conquistando grandes avanços, ainda é verdade aqui, como nos Estados Unidos, que "... as relações raciais simplesmente não constituem prioridade importante na agenda nacional" (Hamilton, 1999). À medida que a maioria afro-brasileira supera os efeitos do tabu da democracia racial, conseguirá de forma crescente a colocar as suas preocupações nessa agenda. Entretanto, ainda tem pela frente, certamente, um longo caminho para percorrer.
Rumos
Embora a dança da decepção ainda carregue grande peso nas
relações sociais do cotidiano, parece certo o avanço na
direção de um tempo em que as invocações da natureza
multirracial da sociedade brasileira possam ser reformuladas em termos que reflitam
uma auto-definição legítima afro-brasileira. A ação
política já deu resultados expressos em vitórias que incluem
mudanças substantivas na política governamental, na legislação
e na avaliação acadêmica da situação. Devemos
usar essas mudanças, por sua vez, para fortalecer ainda mais a voz afro-brasileira,
que vem comandando cada vez mais a sua própria coreografia na parceria
com outros setores da sociedade civil organizada. Sem dúvida, esse fato
está mudando a face da sociedade brasileira e o seu discurso. Embora
a eliminação da desigualdade permaneça uma possibilidade
remota, o reconhecimento da necessidade de enfrentar suas dimensões específicas
constitui um passo importante na direção de viabilizar as políticas
exigidas para atingir esse objetivo.
Conclusão
W. E. B. DuBois anunciou em 1903 que este seria o século da linha de
cor. É inegável que esses cem anos testemunharam os esforços
dos africanos em todo o mundo no sentido de dar fim às múltiplas
formas de dominação que caracterizam o racismo, o colonialismo
e seus legados ultimamente expressos no neoliberalismo e na globalização.
Os africanos em todo o mundo desempenharam um papel central no desenvolvimento
dos direitos humanos internacionais e do direito e da solidariedade internacionais.
A emergência e o progresso dessas duas tendências marcaram o mundo
de forma indelével.
O novo milênio
irá cada vez mais testemunhar o surgimento da voz afro-brasileiro e a
dos africanos em todas as Américas, na Ásia, na Europa e na África.
Sua participação no processo do desenvolvimento humano irá,
sem dúvida, demonstrar a força e o peso de seu potencial para
superar os obstáculos da discriminação racial.