Dança da decepção

Uma leitura das relações raciais no Brasil*

 

Abdias do Nascimento*

Elisa Larkin Nascimento*

 

 

Introdução

Quando, para os europeus, a América do Sul ainda não passava de uma hipótese fantasiosa de aventureiros e sonhadores confirmada apenas por informações oriundas da África, Portugal e Espanha já estavam dividindo entre si o continente. De acordo com os termos do Tratado de Tordesilhas, de 1494 – uma espécie de Conferência de Berlim ao estilo real ibérico –, os portugueses asseguraram para si o maior território, virtualmente um subcontinente, comparável em área aos Estados Unidos, sete vezes o tamanho da África do Sul e gigante em comparação com qualquer outro país da região. Trata-se de um território de fabulosa riqueza natural, a começar pelo próprio solo, que "em se plantando, tudo dá"; um subsolo recheado de metais preciosos; vias aquáticas, florestas e vastas áreas de terras férteis abrangem o Amazonas, o Pantanal e várias outras regiões; a fauna abundante espera a rede do pescador e a perseguição do caçador – o país abriga a maior biodiversidade do planeta.

Com tal base material para se construir, e uma população atual de quase 160 milhões de habitantes, não surpreende que o Brasil seja hoje rotineiramente citado como futura potência mundial. Tem sólida base industrial, infra-estrutura agrícola modernizada e um terceiro setor (serviços) altamente atraente ao investimento estrangeiro. As forças armadas poderosas, o domínio da tecnologia espacial e de satélites e da energia nuclear, recursos hidrelétricos abundantes, gás natural e um combustível renovável desenvolvido com base no álcool de cana-de-açúcar estão entre as vitrines da deslumbrante riqueza de recursos do Brasil. Entretanto, isso existe ao lado de cenas de atraso em que o tempo parece ter parado há séculos, o progresso humano banido pela miséria esquálida das "vidas secas" .

Não é possível compreender tais contrastes sem levar em conta a sua dimensão racial; as "vidas secas" do Brasil são em sua esmagadora maioria não-brancas. Embora as raízes da desigualdade tenham muito em comum com aquelas de outros países em desenvolvimento, há também algumas singularidades que moldam e influenciam seus contornos e as perspectivas de políticas voltadas à sua solução. No caso das desigualdades raciais no Brasil, em comparação com os Estados Unidos e com a África do Sul, a singularidade mais destacada é a ausência de segregação racial por legislação e a cultura nacional da "democracia racial", que funciona como cortina de fumaça a disfarçar as nítidas iniqüidade raciais.

 

 

A desigualdade no Brasil: um panorama geral

Cabe ao Brasil como uma luva a descrição que nosso colega Wilmot James (1999) faz do desenvolvimento econômico sul-africano: "(...) o progresso econômico no século XX tem sido um amálgama da exploração opressiva e do avanço técnico-racional". Embora apresente uma posição avançada em termos de desenvolvimento econômico – entre as dez maiores economias do mundo – , em relação ao desenvolvimento social o Brasil se compara de forma desfavorável a seus vizinhos (Tabela 1). Em 1995, seu PIB per capita era significativamente mais baixo que o da Argentina ou o do Uruguai, porém três vezes mais alto que o do Paraguai. No entanto, 43% dos domicílios brasileiros estavam em situação de pobreza, uma proporção mais alta que no Paraguai e mais de quatro vezes maior que na Argentina e no Uruguai (Cruz, 1998: 27-8). O Brasil tinha a taxa de alfabetização mais baixa e de longe a mais elevada taxa de mortalidade entre crianças com menos de cinco anos de idade: cinqüenta mortes em cada mil, em contraste com aproximadamente dezoito em cada mil entre os afro-americanos dos Estados Unidos (Asante e Mattson, 1991: 166). O salário mínimo era quatro vezes menor que o da Argentina e menos de metade daquele do Paraguai. O valor do salário mínimo no momento em que redigimos este texto é de aproximadamente US$75,00, mais de dez vezes menor do que aquilo que se define como pobreza nos Estados Unidos.

 

Tabela 1: Dados comparativos para os países do Mercosul

Argentina

Brasil

Paraguai

Uruguai

Área

(milhares de km2)

2.737

8.457

397

175

População

35.219.612

157.871.980

4.959.713

3.146.200

Produto Interno Bruto*

5.120

3.370

1.148

6.550

Percentagem de domicílios na pobreza

10,0

(áreas urbanas exclusivamente)

43,0

41,0

7,0

Percentagem de alfabetizados

96,2

79,9

91,2

98,0

Taxa de mortalidade de crianças com menos de 5 anos

25,3

50,2

29,0

24,4

Salário mínimo mensal **

400,00

108,00**

234,00

88,00

* Expresso em dólares constantes de 1990.

** Com a crise cambial de fevereiro de 1999, o valor do salário mínimo no Brasil despencou a um valor menor que o citado nesta tabela para o Uruguai – aproximadamente US$75,00.

Fonte: Cepal (1995), apud. Cruz, 1998: 28-9.

 

Em 1981, o Brasil ficava atrás apenas do Haiti e de Serra Leoa, com a terceira distribuição de renda mais injusta do mundo; desde então, a concentração de renda vem aumentando de forma consistente (Tabelas 2, 3 e 4). Igualmente importante, ou talvez mais ainda, que os níveis abjetos de miséria que acentuam essa desigualdade são os níveis extravagantemente altos de renda abocanhados pelos ricos (Roque e Corrêa, 1998: 3).

 

Tabela 2: Evolução da concentração de renda no Brasil, 1960-2000*

(percentagem).

Ano/Renda

1960

1970

1980

1990

2000

50% mais pobres

18

15

14

12

11

20% mais ricos

54

62

63

65

64

Índice de desigualdade

3

4,1

4,5

5,4

5,8

*Projeção. Fonte: IPEA/IBGE, apud. Mantega, 1998: 99.

 

 

Tabela 3: Índices de desigualdade no Brasil

Proporção da renda apropriada por

1981

1985

1988

1990

1993

1995

10% mais pobres

0,78

0,76

0,59

0,58

0,38

0,43

20% mais pobres

2,5

2,4

2,0

2,0

1,8

1,9

30% mais pobres

5,0

4,8

4,2

4,1

4,1

4,2

40% mais pobres

8,4

8,0

7,2

7,1

7,4

7,3

50% mais pobres

12,9

12,3

11,2

11,2

11,6

11,6

Coeficiente GINI

0,59

0,60

0,62

0,62

0,61

0,61

Fonte: Tabulação pelo IPEA a partir de dados da PNAD 1996.

 

 

Tabela 4: Composição do Produto Interno Bruto, 1990-1996 (percentagens)

Ano/

Remuneração

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

Capital

33

38

38

35

38

40

41

Trabalho

45

42

44

45

40

38

38

Fonte: IBGE e Folha de São Paulo, apud. Mantega, 1998.

 

Com o tempo, os pobres não apenas ficam mais pobres como são sujeitos a condições de vida cada vez mais subumanas. Enquanto uma elite minoritária consome importados de luxo nos shoppings urbanos, médicos das regiões rurais e das comunidades pobres urbanas prescrevem arroz, feijão e leite para curar uma das doenças que mais afligem as crianças: a fome.

Antes de tratar o aspecto racial da desigualdade, convém esclarecer como se identificam no Brasil os grupos raciais. Os dados oficiais do censo brasileiro utilizam duas categorias de cor para se referir aos afrodescendentes: "pretos" e "pardos". Essa distinção tem se revelado arbitrária e subjetiva a ponto de ter pouco significado; entretanto, leva as pessoas não familiarizadas com o contexto demográfico brasileiro a confundir "pretos" – grupo numericamente menor – com negros. Hoje em dia é aceita por consenso a convenção de identificar a população negra como a soma das categorias "pretos" e "pardos", referindo-se a seus membros como "negros", "afro-brasileiros" ou "afrodescendentes". Expressões em inglês como "black", "African Brazilian" e "pessoas de ascendência africana" referem-se igualmente à soma dos dois grupos. Vale notar também que as categorias "brancos" e "pardos" são notoriamente inflacionadas, enquanto a categoria a "pretos" se vê reduzida, pela tendência de os entrevistados afrodescendentes se classificarem como brancos ou mulatos (Mortara, 1970).

Assim, embora de acordo com as estatísticas oficiais a soma dos pretos e pardos represente 48% da população, as estimativas atingem os 70% a 80%, quando se leva em conta a distorção que resulta do ideal de embranquecimento. Certamente, os negros constituem a maioria da população brasileira. Esse fato é essencial à leitura dos dados a seguir apresentados.

A hierarquia e a segregação raciais estão indelevelmente estampadas em paisagens contrastantes de luxo e privação, sendo os afro-brasileiros residentes em favelas, mocambos, palafitas e assim por diante em proporção muito maior que sua participação na população em geral. Visitar a Central do Brasil é testemunhar os trens perigosamente dilapidados que levam horas para transportar os trabalhadores, na sua esmagadora maioria negros, da imensa região metropolitana chamada Baixada Fluminense para o local de trabalho na capital, cena que lembra a jornada dos negros sul-africanos das townships segregadas. O contraste racial entre uma escola pública da Baixada – ou dos subúrbios pobres ou favelas de quase qualquer lugar do Brasil – e uma universidade localizada numa região rica como a Zona Sul do Rio de Janeiro está muito próximo de replicar a diferença entre um colégio de township e uma universidade branca na África do Sul. A diferença é que na township sul-africana se encontram universidades negras, existentes mesmo sob o regime do apartheid; nas favelas e subúrbios do Brasil, não.

A Baixada Fluminense já foi classificada pela Organização Mundial da Saúde como o segundo mais miserável bolsão de pobreza no mundo, superado apenas por Bombaim; entretanto, sua situação não é excepcional no Brasil, pois tais cenários são comuns em todo o país. Por isso, a Baixada oferece um retrato de desigualdade que não deixa de ser representativo.

Quase totalmente negros, os cinco municípios da Baixada vivem praticamente sem esgoto; as crianças brincam no fedor das valas abertas que levam a sujeira através de ruas lamacentas e infestadas de mosquitos. Chamam-se "valas negras", numa alusão não excepcionalmente racista que identifica os afro-brasileiras com o esgoto in natura a que são expostos em proporção maior que sua participação na população. A lepra (hanseníase) e outras epidemias de doenças passíveis de prevenção, como a dengue, constituem problemas de saúde pública em grande parte intocados por políticas públicas nessas áreas. Setenta por cento das crianças da Baixada são severamente subnutridas. A Baixada excede as townships sul-africanas não apenas nos índices de pobreza como também na violência. Há mais óbitos por homicídios que por acidentes de automóvel.

Os níveis extremamente desequilibrados de desenvolvimento dentro dessa imensa nação se traduzem em impressionantes diferenças regionais. Talvez a maior expressão da desigualdade social seja o abismo que separa os residentes de regiões urbanas desenvolvidas das populações rurais miseráveis nas quais os afro-brasileiros constituem maioria (IBGE, 1997: 46). Se a Baixada Fluminense pode ser comparada às townships sul-africanas, as Regiões Norte e Nordeste assemelham-se aos bantustões. O grupo afro-brasileiro (soma das categorias "pretos" e "pardos"), que segundo as estatísticas oficiais constitui apenas 45% da população, se concentra em participações da ordem de 70% (Tabela 5) – portanto, em proporções de fato bem maiores – nessas regiões, onde a prática da escravidão continua impune e a semi-escravidão não deixa de ser comum. Os assassinatos de líderes de sindicatos e comunidades rurais constituem fatos rotineiros da impunidade: entre 1964 e 1986, registraram-se mais de mil, e incontáveis outros ficaram sem registro (SBPC, 1987).

 

Tabela 5: Distribuição da população por cor/raça – 1996 (Percentagem)

 

Brancos

Pretos

Pardos

Orientais

Índios

Brasil

55,2

6,0

38,2

0,4

0,2

Norte urbano**

28,5

3,7

67,2

0,4

0,2

Nordeste

30,6

6,1

62,9

0,1

0,2

Sudeste

65,4

7,4

26,5

0,6

0,1

Sul

85,9

3,1

10,5

0,4

0,1

Centro-Oeste

48,3

4,0

46,6

0,6

0,5

Fonte: PNAD 1996.
*Excluídos os que não declararam a cor.
**Excluindo as regiões rurais de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

 

O ínfimo grupo oriental que consta da tabela (menos de 0,5%) representa a mais recente de uma série de ondas de imigração incentivadas pelo Governo brasileiro desde a última metade do século passado. Ativa na agricultura, essa comunidade asiática, na sua maioria de ascendência japonesa, se concentra no próspero interior do Centro-Oeste, bem como nos centros urbanos e no desenvolvido interior do Sudeste. No Nordeste pobre, os orientais constituem um décimo de um por cento da população. Apesar de terem chegado ao Brasil muito recentemente, sobretudo se comparados aos negros, que estão aqui há quinhentos anos, os asiáticos em geral desfrutam uma posição muito melhor na escala de renda, com implicações positivas para o acesso à educação, ao emprego e à habitação. Os dados apresentados na Tabela 2 do Apêndice, por exemplo, mostram que nos cinco mais baixos decis de renda a participação dos orientais eqüivale à metade de sua participação na população em geral, enquanto nos decis oito, nove e dez, de renda mais alta, eles estão presentes respectivamente duas, três e seis vezes mais que sua participação na população. Edson Lopes Cardoso (1999) nota o contraste entre dois importantes bairros urbanos chamados de Liberdade: o bairro oriental de São Paulo e a Liberdade afro-brasileira de Salvador, capital do Estado nordestino da Bahia. Em São Paulo, parece natural que as ruas da Liberdade sejam pontilhadas de avisos anunciando: "Procura-se: boy oriental" ou "Precisamos de balconista japonês". Ninguém considera estranho que nos bancos da Liberdade paulista se encontrem caixas japoneses ou nas lojas, gerentes asiáticos. Entretanto, na Liberdade de Salvador, onde a população é negra na ordem de 90%, os caixas de bancos e gerentes de lojas são quase sempre brancos (ou até mesmo japoneses), e qualquer sugestão de preferência por negros em emprego, educação, acesso a lazer ou serviços públicos é condenada, com veemência e indignação, como racista pela sociedade baiana.

Os índios brasileiros, habitantes originais desta terra, têm sido vítimas do genocídio desde os tempos coloniais. O resultado é que hoje constituem menor parcela da população geral do que os orientais, até mesmo na Região Centro-Oeste, onde são mais numerosos. Vivendo hoje uma pobreza desesperadora, privados de suas terras e tradições, o suicídio alastrando-se entre seus jovens em proporções epidêmicas, os poucos índios que sobram continuam lutando para sobreviver. Ao longo da história do país, ora têm sido desprezados, ora romantizados, tornando-se neste século o símbolo do movimento modernista dos artistas e intelectuais da elite urbana. O lema modernista da antropofagia constitui uma imagem muito adequada de como a sociedade e a cultura brancas do Brasil metaforicamente "comeram" e digeriram o que elas rotularam de tradições indígenas e afro-brasileiras, produzindo o que definiram como uma nova cultura "sincrética" moderna. Essa imagem auto-elogioso era ao mesmo tempo auto-ilusória, pois, na medida em que os modernistas acreditavam estar rejeitando os padrões coloniais europeus em favor dos indígenas e africanos, "mais autênticos", na verdade eles compreendiam muito pouco da tradição indígena ou africana e se limitavam a articular slogans novos, porém ainda ocidentais na sua essência.

O que diferencia a situação racial no Brasil da que vive a África do Sul ou os Estados Unidos não é tanto a natureza da injustiça social quanto essa dança da decepção ideológica. Tradicionalmente, os analistas permaneceram tão enamorados da idéia da harmonia entre as raças no Brasil que ignoraram em grande parte as desigualdades raciais. Quando reconhecidas, estas são atribuídas ao que os intelectuais brasileiros chamam "a questão social", em oposição à "questão racial". Sendo esta última percebida como pouco relevante no Brasil, as desigualdades de natureza racial são imputadas ao legado histórico da escravidão, considerando-se insignificante na sua composição a discriminação racial atual ou recente. Embora se reconheça a existência do "preconceito" – ao contrário da "discriminação" –, este é visto como apenas um problema estético que exerce pouca influência, talvez nenhuma, sobre a realidade social .

A potência de tais idéias, popularizadas a um grau talvez sem precedentes entre as teorias acadêmicas de ciências sociais, tem sido tão central na articulação da consciência nacional brasileira a ponto de dotá-las de uma aura próxima ao tabu.

Em tempos recentes, porém, a natureza racial das desigualdades tem sido progressivamente demonstrada pela pesquisa das ciências sociais , de forma que Roque e Corrêa puderam observar (1998) que "(...) dois fatores de disparidade atravessam diferentes níveis de reprodução da desigualdade social e têm profundas raízes na cultura brasileira: gênero e raça".

Entretanto, no Brasil a distinção de gênero não pode ser compreendida de forma adequada sem se considerar a questão racial. Na hierarquia da renda, o primeiro fator determinante é raça, depois gênero. As mulheres brancas mantêm uma posição nitidamente privilegiada em relação aos homens negros, e as mulheres afro-brasileiras estão no mais baixo degrau da escala de renda e emprego, como demonstram claramente as Tabelas 6 e 6A abaixo, bem como as Tabelas 2 a 4 do Apêndice. Os homens brancos recebem mais de três vezes o que ganham as mulheres afro-brasileiras, que por sua vez ganham a metade ou menos da metade do valor da renda mediana das mulheres brancas .

 

 

Tabela 6: Renda média por gênero e raça*

Homens brancos

6,3

Mulheres brancas

3,6

Homens negros

2,9

Mulheres negras

1,7

*Expresso em múltiplos do salário mínimo mensal. Fonte: IBGE, 1994.

 

 

Tabela 6A: Renda média por gênero e raça (R$)

Cor

Gênero

Total

Masculino

Feminino

Branca

757,51

459,20

630,38

Preta

338,61

227,13

292,05

Parda

359,27

234,72

309,66

Total

589,89

370,33

498,57

Fonte: PNAD, 1996. Compilado por Nelson do Valle Silva/ IUPERJ.

 

 

As disparidades de renda entre os grupos raciais também são observadas regionalmente. A Tabela 7 mostra que o Norte e Nordeste, onde os afro-brasileiros constituem a grande maioria da população, têm os níveis mais baixos de renda e de atividade econômica do país, e as mais altas taxas de desigualdade (índice Gini). A Tabela 8 mostra a renda familiar média por região, confirmando que as regiões com populações majoritariamente afro-brasileiras são de longe as mais pobres.

 

Tabela 7: Renda e índices de desigualdade por região

Renda média mensal (R$)

Índice Gini

Taxa de atividade econômica

Brasil

290

0,590

59,1

Norte urbano**

236

0,569

54,9

Nordeste

158

0,590

57,9

Sudeste

366

0,569

58,1

Sul

325

0,567

64,6

Centro-Oeste

290

0,599

61,6

Fonte: IBGE, 1997; PNAD, 1996.

*População de 10 anos ou mais, com ou sem renda.

**Excluídas as áreas rurais de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

 

 

Tabela 8: Renda familiar média por região*, 1996

Até 2

Mais de 2 até 5

Mais de 5 até 10

Mais de 10 até 20

Mais de 20

Sem renda**

Brasil

22,9

29,2

21,0

12,5

8,4

3,7

Norte urbano***

23,1

31,4

20,7

12,0

6,4

5,1

Nordeste

40,6

30,2

11,9

5,4

3,6

5,1

Sudeste

14,1

27,4

25,4

16,6

11,4

2,9

Sul

17,8

30,5

24,9

13,9

8,7

2,6

Centro-Oeste

21,7

32,1

20,0

11,5

8,7

4,3

Fonte: PNAD, 1996.

* Expressa em múltiplos do salário mínimo mensal.

** Excluídos os que não declararam a renda.

***Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

Se as regiões habitadas por maior número de brasileiros afrodescendentes são indubitavelmente as mais pobres, existem também diferenças consistentes e muito significativas entre os grupos raciais ou de cor dentro de cada região. A Tabela 10 demonstra, por exemplo, que nos Estados mais ricos da Região Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo) a incidência de miséria é duas ou três vezes mais alta entre os negros que entre os brancos. No Nordeste, a proporção de negros na miséria é um terço parte maior que a de brancos; nas Regiões Norte e Centro-Oeste, é mais de 60% mais alta. As Tabelas 4-8 do apêndice mostram que essas diferenças prevalecem independentemente das variações de nível de instrução, idade e gênero do chefe de família, número de dependentes na família e área residencial.

 

 

Tabela 9: Incidência de carência (renda familiar per capita até ¼ de um salário mínimo) por cor do respondeste e região (1988)

Estado/Região

Cor

Branca

Preta

Parda

Rio de Janeiro (Sudeste)

6,0%

12,7%

13,8%

São Paulo (Sudeste)

4,0%

12,3%

8,7%

Sul

15,2%

23,8%

27,9%

Minas Gerais/Espírito Santo

(Sudeste)

19,4%

37,7%

35,1%

Nordeste

38,5%

51,3%

49,5%

Norte/Centro-Oeste

14,0%

26,9%

23,2%

Fonte: IBGE/ PNAD, 1988. Tabulação de Nelson do Valle Silva.

 

 

No Brasil em geral, os negros ganham menos da metade do que ganham os brancos (Silva, 1998). Aproximadamente 26% dos negros, contra 16% dos brancos, ganham menos de um salário mínimo, enquanto 1% de negros, contra 4% dos brancos, ganham mais que dez vezes o valor do salário mínimo. Os afro-brasileiros instruídos ganham menos que os brancos com o mesmo nível de educação, e nas faixas de renda mais alta eles recebem aproximadamente 5,6 vezes menos que os brancos.

A Tabela 10 mostra que a proporção de negros que vivem na carência, ganhando menos que R$ 38,00 mensais, é duas vezes maior que entre os brancos. A relação inversa prevalece nas camadas de renda mais alta, sendo a proporção de brancos nas faixas altas de renda três, quatro ou cinco vezes maior que entre os negros. Apenas na categoria de renda entre meio e um salário mínimo (aqueles que ganham entre US$ 16,00 e US$ 32,50 mensais) as diferenças entre os grupos de raça ou cor são menos acentuadas. Aproximadamente um quarto dos brancos, pretos e pardos aparece nessa categoria, fato que ilustra graficamente os níveis de pobreza no Brasil. Já no nível de renda seguinte, contudo, entre aqueles que ganham entre um e dois salários mínimos, a proporção de brancos é duas vezes mais alta que a de negros, diferença que cresce à medida que se elevam os níveis de renda .

 

 

Tabela 10: Renda familiar per capita por cor do respondente (Brasil, 1988)

Renda familiar per capita

Cor

Branca

Preta

Parda

Até ¼ salário mínimo

14,7

30,2

36,0

¼ to ½

19,2

27,4

26,8

½ to 1

24,2

24,9

20,7

1 a 2

20,2

12,0

10,6

2 a 3

8,2

2,7

2,9

3 a 5

6,5

1,6

1,8

5 a 10

4,5

0,8

0,9

10 a 20

1,5

0,3

0,2

20 ou mais

0,3

0,1

0,0

Total

100%

100%

100%

Fonte: IBGE, PNAD-88. Tabulação de Nelson do Valle Silva/ IUPERJ.

A situação da mulher afro-brasileira é o próprio retrato da feminização da pobreza observada pelo movimento das mulheres em todo o mundo durante as últimas décadas. Oitenta por cento das mulheres negras empregadas estão concentradas em ocupações manuais; mais de metade é empregada doméstica e as demais são autônomas, oferecendo serviços domésticas (lavar, passar, cozinhar, etc.). Trata-se de uma das ocupações mais mal pagas na economia brasileira. Aproximadamente uma em quatro mulheres chefes de família afro-brasileiras ganha menos que um salário mínimo (Castro, 1991). Esses parâmetros têm permanecido constantes ou piorado com o tempo. As taxas de desemprego são mais altas entre os negros, o que sugere que as mulheres afro-brasileiras respondem por mais que sua parte das taxas extraordinariamente altas entre as mulheres em geral.

 

 

Tabela 11: Taxas de desemprego por raça e gênero, 1996

Total

Homens

Mulheres

Brancos

Negros

(pretos/ pardos)

Brasil

6,9

5,7

8,8

6,6

7,7

Norte urbano**

7,7

6

10,2

6,8

8,2

Nordeste

6,3

5,2

7,8

5,7

6,5

Sudeste

7,7

6,2

9,8

7,4

8,7

Sul

5,4

4,5

6,6

5,1

8,1

Centro-Oeste

7,9

6,2

10,5

7,6

8,7

Fonte: PNAD, 1996.

*População com dez anos ou mais, com ou sem renda.

**Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

 

 

Entre os pobres, não apenas as famílias negras estão presentes acima de sua proporção na população em geral, como também sua renda per capita está num nível mais baixo, o que significa que mais pessoas da família devem trabalhar para conseguir uma renda familiar equivalente. As crianças freqüentemente precisam deixar de estudar para "ajudar a família" cortando cana, trabalhando nas colheitas ou nas minas, vendendo doces no sinal luminoso da esquina. As taxas de analfabetismo entre os afro-brasileiros são mais que duas vezes maiores que entre os brancos, e a porcentagem de negros com nove anos ou mais de estudos é quase três vezes menor que entre os brancos. Uma criança afro-brasileira tem uma chance de mais ou menos 66% de obter uma educação básica, ao passo que a branca tem 85% de chance. Uma vez completado o ensino básico, as chances da criança negra de continuar para a escola secundária são da ordem de 40%, enquanto uma criança branca tem 57% de chance. Os afro-brasileiros que completam o ensino médio têm aproximadamente metade da oportunidade dos alunos brancos de seguir para a universidade (Sant’Anna e Paixão, 1998: 112-4.)

As seguintes tabelas dão uma idéia dos índices de escolaridade e analfabetismo por região, gênero e cor. A Tabela 12 mostra que as taxas de analfabetismo são de longe as mais altas no Nordeste, pobre e predominantemente negro, onde menos se matriculam crianças. As diferenças de escolaridade (Tabela 13) são sensivelmente maiores entre negros e brancos do que entre homens e mulheres em todas as regiões, fato confirmado pela Tabela 14. Esta mostra que a proporção das mulheres brancas que têm até um ano de ensino equivale à metade da proporção de mulheres negras; entre homens brancos e homens negros essa diferença é ligeiramente menos acentuada. Nessa faixa de escolaridade, como em todas as outras, a diferença entre os homens brancos e as mulheres brancas é sensivelmente menor que aquela verificada entre brancos e negros em geral; entre homens negros e mulheres negras, a diferença se revela ainda menos acentuada. A proporção de negros (homens e mulheres) com 11 a 16 anos de escolaridade é mais ou menos a metade da proporção dos brancos (homens e mulheres). As mulheres negras estão ligeiramente mais presentes que os homens negros nas categorias mais altas de ensino, mas essa brecha é insignificante quando comparada com a diferença entre negros e brancos em geral: na categoria de quinze anos de ensino ou mais, a proporção de brancos chega a ser seis vezes maior que a de negros.

 

 

Tabela 12: Taxas de analfabetismo e matrícula,* 1996

Taxas de analfabetismo

Taxas de matrícula

Total

Homens

Mulheres

Total

Homens

Mulheres

Brasil

14,7

14,5

14,8

91,2

90,6

91,8

Norte urbano **

11,6

11,2

11,9

92,1

92,1

92,2

Nordeste

28,7

31,1

26,6

86,4

84,8

88,0

Sudeste

8,7

7,5

9,9

94,1

93,9

94,3

Sul

8,9

7,8

9,9

93,6

94,1

93,0

Centro-Oeste

11,6

11,3

11,8

92,9

92,5

93,4

Fonte: PNAD, 1996.

* Pessoas com 15 anos ou mais.

**Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

 

 

 

 

 

 

Tabela 13: Escolaridade média em anos de estudo por raça, gênero e região, 1996

Total

Homens

Mulheres

Brancos

Negros

(Pretos/ Pardos)

Brasil

5,3

5,2

5,4

6,2

4,2

Norte urbano **

5,2

4,9

5,4

6,3

4,7

Nordeste

3,9

3,6

4,2

4,8

3,5

Sudeste

6,0

6,0

6,0

6,6

4,9

Sul

5,8

5,8

5,8

6,0

4,.3

Centro-Oeste

5,5

5,2

5,5

6,3

4,7

Fonte: PNAD, 1996.

* Pessoas com dez anos ou mais.

** Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

 

 

Tabela 14: Anos de escolaridade (%) por gênero e cor do respondente, pessoas de 20 anos ou mais

Anos de escolaridade

Homens

Mulheres

Brancos

Preta

Parda

Brancos

Preta

Parda

Nenhum/ menos de 1 ano

16,2

24,0

23,4

11,2

25,5

21,0

1 a 3 anos

17,0

23,8

25,8

15,7

21,4

23,2

4 a 7 anos

36,6

33,9

32,0

35,5

32,3

33,7

8 a10 anos

15,6

11,2

10,5

15,3

11,5

11,5

11 a 14 anos

14,4

6,1

7,1

16,4

8,2

9,2

15 ou mais anos

6,2

0,9

1,2

5,9

1,1

1,4

Total

100

100

100

100

100

100

Fonte: PNAD, 1996. Tabulação de Nelson do Valle Silva/ IUPERJ.

 

O ensino público é sabidamente inferior ao ensino particular, sendo este acessível na maioria a alunos brancos. Em grande parte, a deterioração da qualidade do ensino público foi obra do regime militar de 1964-85. Os efeitos de suas políticas de ensino perduraram mais que a própria ditadura. Esta, onde não destruiu o ensino público, o minou ao entregar a educação ao lobby do setor privado com fins lucrativos. O ensino público de qualidade, que existia antes da década dos 1970, praticamente foi erradicado. Hoje, o ensino público básico e secundário não prepara os alunos para a universidade, enquanto o ensino superior público, gratuito, é acessível quase exclusivamente à elite minoritária que pode pagar as mensalidades extremamente caras da rede particular do primeiro e segundo grau.

Aliás, excluindo a menção de indianos e do ensino "excelente" (mesmo o melhor padrão de ensino no Brasil não chega a ser excelente), a seguinte descrição do sistema de ensino sul-africano feita por nosso colega Wilmot James (1999) bem poderia referir-se ao do Brasil:

 

(...) um sistema de ensino que luta para matricular todos os alunos que têm direito, não consegue reter a maioria até o nível secundário e lhe oferece uma qualidade de ensino que varia do excelente (para uma minoria) ao abismal (para a maioria). A conseqüência é uma pirâmide racial de resultados educacionais. (...) A rápida expansão do envolvimento de africanos no ensino superior significa sua matrícula nas direções menos técnicas, já que a maioria das escolas para alunos africanos não consegue qualificá-los em matemática e ciências. O resultado é que a elite técnica e comercial permanece predominantemente branca e indiana.

Quanto à expectativa de vida, no Brasil ela é mais curta entre os negros que entre os brancos, mesmo levando-se em conta as diferenças de renda e níveis de educação (Tabelas 15 e 16). Embora sejam grandes as diferenças nas taxas de mortalidade infantil e de crianças até cinco anos, essas taxas são sensivelmente mais altas entre os negros de todas as regiões (Tabela 17). Talvez mais expressivas sejam as dessemelhanças raciais nas condições de vida (esgoto, coleta de lixo, água encanada) mostradas nas Tabelas 18 e 19: mais uma vez, as diferenças raciais prevalecem acima das nítidas desigualdades entre as regiões .

 

 

Tabela 15: Expectativa de vida ao nascer, por raça*

1940/50

1970/80

Brancos

47,5

66,1

Não-Brancos

40

59,4

Fonte: PNAD, 1990. Tabulação de Singer, 1995, apud. Bento, 1998: 61.

 

 

Tabela 16: Expectativa de vida ao nascer, por raça, renda e educação, 1996

Renda

Educação

Níveis mais baixos

Níveis mais altos

1-4 anos

4 anos ou mais

Brancos

59,5

70,4

66,2

72,3

Não-Brancos

55,8

63,7

62,2

66,6

Fonte: PNAD, 1990. Tabulação de Singer, 1995, apud. Bento, 1998: 61.

 

 

Tabela 17: Mortalidade infantil e mortalidade de crianças com menos de 5 anos* por gênero e raça, 1996

Mortalidade infantil por 1000

Mortalidade de crianças com menos de 5 anos

Masc.

Fem.

Masc.

Fem.

Brasil

48,0

36,4

65,5

49,7

Norte Urbano**

45,2

34,6

-

41,6

Nordeste

71,7

60,8

105,7

33,5

Sudeste

27,7

17,2

41,4

74,8

Sul

25,2

14,8

36,2

50,0

Centro-Oeste

29,5

19,3

46,1

35,1

Taxa de mortalidade infantil por 1000

Taxa de mortalidade de crianças até 5 anos/ 1000

Branca

Negra

(Preta/ Parda)

Branca

Negra

(Preto/Pardo)

Brasil

37,3

62,3

45,7

76,1

Norte urbano **

-

-

-

-

Nordeste

68

96,3

82,8

102,1

Sudeste

25,1

43,1

30,9

52,7

Sul

28,3

38,9

34,8

47,7

Centro-Oeste

27,8

42,0

31,1

51,4

Fonte: PNAD, 1996. *Estimativas de 1993.

**Excluindo o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

 

 

Tabela 18: Saneamento por raça dos chefes de família, 1996 (Percentagens)

Água tratada

Esgoto*

Branca

Negra

(Preto/Pardo)

Branca

Negra

(Preto/Pardo)

Brasil

81,0

64,7

73,6

49,7

Norte urbano **

63,0

54,8

56,5

41,6

Nordeste

64,2

52,6

47,0

33,5

Sudeste

89,1

52,6

86,8

74,8

Sul

77,0

52,6

69,2

50,0

Centro-Oeste

72,0

76,8

43,6

35,1

Fonte: PNAD, 1996.

* Sistema de coleta de esgoto ou fossa.

** Excluído o interior rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

 

 

Tabela 19: Proporção de habitantes com infraestrutura de moradia, por raça

Proporção de habitantes com:

Cor

 

Total

Branca

Preta

Parda

Coleta de lixo doméstico

70,8

53,1

47,8

61,0

Água encanada

84,2

61,6

56,1

72,1

Energia elétrica

92,1

81,8

78,0

86,1

Casas rústicas, com um quarto ou cômodo

3,2

11,9

11,6

7,0

Geladeira

81,0

58,5

54,1

69,4

Televisão

82,9

64,1

59,4

72,8

Fonte: PNAD, 1996. Agradecimentos a Nelson do Valle Silva/ IUPERJ.

 

Os currículos escolares e a literatura didática geralmente retratam um Brasil branco, omitindo ou distorcendo a história e a cultura da população majoritária de afro-brasileiros. Da mesma forma, a mídia divulga a imagem de um Brasil que parece escandinavo, apesar do fato de a maioria de sua população ter ascendência africana. Quando aparecem os afro-brasileiros nessa mídia, em geral são estereotipados em posições subordinadas, e as imagens publicitárias com conotações racistas têm sido denunciadas com freqüência nos últimos anos.

A discriminação por meio do estereótipo é muito concreta na vida afro-brasileira, sobretudo na forma da repressão policial. O negro é "suspeito" notório, e a prisão arbitrária é experiência não apenas de cidadãos afro-brasileiros como também de diplomatas africanos, tomados por "negros metidos a besta", cujos carros luxuosos só podem ser roubados. As condenações são mais freqüentes entre os acusados negros, e essa é apenas uma das inúmeras formas de discriminação no sistema judiciário (Oliveira et. al., 1998). A invasão pela polícia dos lares nas favelas e a agressão contra seus habitantes constituem procedimentos rotineiros; são comuns as mortes e ferimentos de moradores inocentes. A violência contra crianças e adolescentes, reconhecida internacionalmente após os massacres de Candelária e Vigário Geral, vitimiza afro-brasileiros em mais de 80% dos casos (CEAP, 1991).

Embora negada com indignação em discussões cotidianas, a discriminação no emprego e na remuneração é uma realidade bem documentada (PNDH, 1998; Nascimento, 1997-99). Outros tipos de discriminação perseguem os negros brasileiros no seu cotidiano, tal como nas sociedades segregadas. Uma das formas mais recentes ocorre nos bancos, onde os detetores de metal que bloqueiam automaticamente as portas não são desativados para deixar entrar clientes negros em situações em que brancos seriam admitidos rotineiramente. Também são freqüentes as acusações infundadas de furto e as exigências excepcionalmente rigorosas de identificação e documentação de clientes afro-brasileiros que pagam com cheque.

 

 

Raízes históricas da desigualdade

O início do Brasil moderno insere-se no mesmo processo que trouxe ao mundo países como os Estados Unidos e a África do Sul: a estonteante expansão da Europa do século XV em diante, navegadores portugueses à frente, determinados a arrancar das terras de povos nativos o exclusivo domínio sobre as riquezas e as fêmeas do mundo. Os conquistadores portugueses e espanhóis se preocupavam menos em estabelecer moradia nas novas terras do que em transferir sua riqueza para a Europa. Assim, o estupro sistemático das mulheres negras e indígenas foi um fato tão básico à estruturação dessas sociedades como a subordinação das mulheres brancas. Desde o início, a dívida externa e o modelo de produção baseado na monocultura e na extração mineral para exportação fixaram o tom das políticas macroeconômicas que, de maneira consistente, vêm sangrando o Brasil até hoje.

Talvez a diferença mais marcante da presença histórica e contemporânea dos africanos no Brasil, quando comparada à dos Estados Unidos, seja que, durante toda a sua história, como no regime de colonos minoritários da África do Sul, os africanos e seus descendentes vêm constituindo a maioria da população. As Américas Central e do Sul como um todo, aliás, têm população majoritária de ascendência indígena e/ou africana, fato que coloca em cena o primeiro e ágil passo da dança da decepção, pois o título "América Latina" trai a imposição, em grande parte por meios violentos, de uma identidade européia sobre povos não latinos. A pirueta que a acompanha, a noção de "descoberta" aplicada a uma terra de civilizações avançadas habitada por milênios, lembra o processo de genocídio desencadeado contra esses povos durante séculos. Desse processo emergiu uma América que é "Latina" apenas na medida em que as elites minoritárias brancas têm conseguido suprimir a identidade de seus povos.

A importação de africanos para as colônias portuguesa e espanholas teve início muito mais cedo do que nos Estados Unidos. Entre 1502 e 1870, as Américas Central e do Sul importaram 5,3 milhões de africanos escravizados, o Brasil dando conta de 3,6 milhões, enquanto no mesmo período foram levados cerca de 450.000 africanos aos Estados Unidos (Chiavenato, 1980). A proximidade entre Brasil e África significava preços tão baixos que era mais rentável comprar um africano novo do que preservar a saúde de um escravo. Os africanos duravam, em geral, por volta de sete anos, sendo substituídos logo depois. Tal procedimento não seria econômico nos Estados Unidos. A imagem sulista norte-americana das cabanas de famílias escravizadas contrasta nitidamente com da senzala brasileira, que mais parecia um navio negreiro em terra, abrigando centenas de uma só vez.

O Brasil foi o último país cristão do mundo a abolir a escravidão, em 1888. Nenhuma medida foi tomada para integrar os novos cidadãos afrodescendentes à economia ou à sociedade nacionais. Muitos ficaram nas fazendas, na condição de semi-escravos, ou se mudaram das senzalas para os morros urbanos, assim formando as favelas. Alguma destas têm raízes anteriores como quilombos. Santos (1994, 1996) demonstra de forma convincente que a natureza da abolição da escravatura no Brasil foi o componente essencial a determinar a natureza circular da cadeia de fatores interligados que causam e caracterizam a exclusão histórica dos afro-brasileiros.

Durante os períodos colonialista e abolicionista, a maioria não-latina das Américas Central e do Sul era geralmente da ordem de três quintos a dois terços. Em 1872, no Brasil, os negros eram 6,1 milhões contra 3,7 milhões de brancos. A abolição causou um verdadeiro pânico na elite dominante, que se apressou em construir políticas públicas destinadas a apagar a "mancha negra" e a "purificar o estoque racial da nação". O objetivo declarado pelo delegado brasileiro ao Congresso Universal das Raças, realizado em Londres no ano de 1911, era eliminar os descendentes de africanos até o ano de 2012 (Skidmore, 1974: 66). A subordinação da mulher, tanto branca quanto negra, constituía ponto chave nessa ordem de planejamento político.

Tais políticas tinham duas pedras fundamentais: a imigração européia em massa, subsidiada pelo Estado, sob legislação que excluía as raças indesejáveis, e o cultivo do ideal do embranquecimento com base na subordinação da mulher e no lema "casar com branco para melhorar a raça". Nesse particular, a política da decepção se destaca em nítido relevo, e o maior exemplo disso na área da pesquisa acadêmica está no fato de que a imigração européia era tida, até muito recentemente, por respeitados analistas (e.g. Prado Jr., 1966), como imperativo de uma suposta "falta de mão-de-obra qualificada" para competir na nascente economia industrial. A ciência social, como a sociedade, simplesmente eliminou do mercado de trabalho a população majoritária de afro-brasileiros emancipados que, escravizados ou livres, haviam sido não apenas responsáveis por trabalhos altamente sofisticados como também "qualificados" para operar todas as mudanças tecnológicas até então introduzidas na economia brasileira. O fato é que os empregos agora seriam destinados aos europeus, "mais desejáveis", cuja vinda subsidiada tinha o objetivo de contribuir para a "melhoria", ou seja, o embranquecimento, da identidade racial brasileira (Skidmore, 1974).

A população majoritária de ascendência africana incorporava uma ameaça potencial ao poder político da elite minoritária, e o medo diante dessa ameaça traduzia-se no discurso da unidade nacional. Mesclado às noções do racismo pseudo-científico, esse discurso fixou a africanidade e a negritude como anti-brasileiras. Embora nunca houvesse existido um Brasil sem os africanos, estes foram transformados em estrangeiros por uma definição quase exclusivamente européia da "identidade nacional".

Entre 1890 e 1914, mais de 1,5 milhão de europeus chegaram apenas ao Estado de São Paulo, 64% com a passagem paga pelo Governo estadual (Andrews, 1991). No entanto, estigmatizados não apenas como desqualificados mas também como perigosos e desordeiros, os homens negros foram praticamente excluídos do novo mercado de trabalho industrial. As mulheres afro-brasileiras foram trabalhar a troco de migalhas – quando recebiam algo além de casa e comida – como cozinheiras, babás e lavadeiras. Outras ganhavam a vida como vendedoras ambulantes. Foram as comunidades religiosas afro-brasileiras, na maioria das vezes sob a liderança de mulheres, que, apesar da perseguição policial, possibilitaram ao povo afrodescendente, nessas condições, a sobrevivência e o desenvolvimento humano.

Esse é, de forma resumida, o pano de fundo histórico das agudas desigualdades de renda, emprego, habitação e outras que atingem os afrodescendentes no Brasil de hoje. Embora não caracterizadas, de forma geral, por um estatuto legal – embora várias leis tenham estabelecido explicitamente políticas racistas, a começar pela inscrição da eugenia na Constituição brasileira de 1934 –, essas desigualdades constituem nitidamente uma hirta realidade de segregação de fato.

 

 

O embranquecimento, a demografia e as classificações de cor

No Brasil, como em toda a América "Latina", a cultura do embranquecimento ou blanqueamento, fundamentada na subordinação da mulher, constitui uma coreografia que conduz o balé da mestiçagem (mestizaje) em intricados passos em torno da convicção de que as elites ibéricas criaram uma forma cordial e harmoniosa de relações raciais. Dois corolários se associam intimamente a essa noção: que a escravidão foi, nessa região, uma instituição mais benevolente e que a ausência de segregação racial por lei, junto com a garantia constitucional da igualdade perante a lei, bastava para caracterizar a sociedade como não-racista. Ambas as idéias têm tido um impacto pesadíssimo não apenas sobre a consciência popular brasileira como também sobre a imagem do país no exterior.

A própria existência da população mestiça é tida como garantia final contra a existência de discriminação racial, em contraste com países "realmente racistas", como os Estados Unidos e a África do Sul, onde os dançarinos do balé da democracia racial acreditam que não exista a mistura de raças. Alegações historicamente infundadas e auto-elogiosas, tradicionais e caras à elite, no sentido de que a miscigenação se baseava no casamento ou nas relações sexuais cordiais entre as raças, já foram desmascaradas por escritores afrodescendentes que demonstram que isso se deu – e ainda se dá – essa uma função da subordinação das mulheres negras desde os tempos coloniais (Nascimento, 1977, 1978, 1980; Carneiro, 1997; Sant’Anna, 1998; Gilliam, 1998). Sendo o objetivo do colonialismo ibérico extrair a riqueza e não construir uma pátria, mulheres brancas não eram trazidas, inicialmente, da Europa. As mulheres africanas passaram à condição de permanente e obrigatoriamente disponíveis propriedades sexuais dos senhores brancos, talvez em maior número, mas em outros aspectos exatamente da mesma forma que o eram nos regimes segregacionistas de colonos brancos como aqueles dos Estados Unidos e da África do Sul.

A noção de relações harmoniosas dentro de um sistema escravista benevolente não deixa de exibir suas semelhanças com o retrato rosado do Sul escravista dos Estados Unidos antes da Guerra Civil que consta dos familiares clássicos da literatura e do cinema hollywoodiano. Mas o sabor latino do machismo marca profundamente essa ideologia, como ilustra a doce versão da miscigenação apresentada por Pierre Verger (1977: 10) quando descreve como os filhos brancos dos fazendeiros

 

(...) andavam pelo eito junto com os negrinhos que serviam-lhes recebendo o castigo no seu lugar mas também como colegas de brincadeira e de escola. Eles adotaram reações e padrões de comportamento africanos. Mais tarde, eles teriam sua iniciação sexual com as meninas de cor que trabalhavam na casa grande ou no eito, assim infundindo elementos de atração sensual e de compreensão mútua nas suas relações com aquilo que escolhemos chamar pessoas de diferentes raças.

O abuso sexual contra as mulheres subjugadas é uma questão de dominação, seja na guerra (desde Átila, o Huno e as legiões romanas até a Bósnia e o Kosovo), seja na manutenção dos regimes coloniais ou autoritários. A miscigenação como fruto desse abuso pouco transmite sobre a compreensão ou atração entre seres humanos, mas fala eloqüentemente sobre o controle violento das mulheres. O gênio da ideologia brasileira foi fazer dessa violência o cerne de um discurso auto-elogioso em que a elite branca se purga de qualquer responsabilidade ou culpa por seus excessos de opressão. Gilberto Freyre (1940, 1946) é o mestre desse discurso: descreve graficamente, em minuciosos detalhes, os horrores da tortura e das injustiças cometidas contra os africanos escravizados, e depois conclui deixando pérolas como a seguinte a brilhar contra o pano de fundo da desigualdade no Brasil:

 

O cruzamento tão largamente praticado aqui corrigia a distância social que de outra forma teria permanecido imensa entre a casa grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravista produziu em termos de aristocratização, dividindo a sociedade brasileira em classes de senhores e escravos, (...) foi em grande parte neutralizado pelo efeito social da miscigenação. As mulheres índias e africanas, de início, depois as mulatas, as mais claras, as oitavas e assim por diante, tornando-se domésticas, concubinas e até mesmo esposas legítimas dos senhores brancos, desempenharam papel poderoso na democratização social do Brasil.

Tais idéias são intrincadamente combinadas com uma hierarquia de cor que já foi definida por intelectuais afro-americanos da região como pigmentocracia, em que a pele mais clara é identificada com maior prestígio e posição econômica. Constitui motivo de avanço na hierarquia social não apenas "melhorar a raça", como também rejeitar a identidade africana e assumir os valores culturais e os critérios de beleza pessoal europeus.

Central a essa questão são as minúcias do discurso sobre a mulata, cuja imagem como padrão de beleza no retrato rosado de uma sociedade não-racista tem sido redondamente denunciada como cortina de fumaça e racionalização da exploração sexual (Nascimento, 1978; Ramos-Bennett, 1995; Gilliam e Gilliam, 1996; Gilliam, 1998). O ideal estético de beleza pessoal que prevalece no Brasil é o da loura de olhos azuis, que, em contraste com a mulata, não é estereotipada como fácil ou quente. Não é à toa que se diz: "Branca para casar, negra para trabalhar, mulata para fornicar."

A compulsão social da brancura constitui herança comum aos regimes coloniais, e os problemas psicológicos que a acompanham têm sido revelados desde há muito por analistas como Frantz Fanon (1967) e Albert Memmi (1965). O que diferencia a nossa dança da decepção é que, em vez de ser vista como uma das muitas faces do supremacismo branco ou como legado do colonialismo, essa compulsão da brancura é apresentada como prova positiva do anti-racismo latino. O seguinte exemplo (Diegues Jr., 1977) expressa bem o esforço da elite dirigente no sentido de apresentar o Brasil como um país branco, a despeito da realidade dos fatos demográficos:

 

(...) é evidente a predominância do contingente branco [na população brasileira], já que no Brasil até mesmo aqueles de raça mista que têm uma quantidade grande ou pequena de sangue negro ou índio, mas sem os traços físicos de um desses grupos, são considerados brancos. O que demonstra a ausência de qualquer discriminação de natureza racial, em termos da origem étnica da pessoa.

Nas ciências sociais brasileiras, vastas reservas de energia têm sido e ainda são dedicadas a essa última hipótese, de que exista uma diferença essencial entre a rejeição da aparência africana e a rejeição da origem africana. O critério da hipodescendência é considerado racista, enquanto o "preconceito de marca", o critério de cor da pigmentocracia baseado na aparência, é visto como arbitrário e inocente, uma antipatia puramente estética ao fenótipo mais escuro (Nogueira, 1955, 1959). Executando mais um arabesco na dança de decepção, os teóricos desassociam o fenótipo africano da origem africana e concluem que os latinos desenvolveram uma forma "mais benigna" de preconceito, de natureza não-racial.

A ideologia do embranquecimento conseguiu tornar os critérios demográficos uma bagunça geral ao pressionar os entrevistados dos censos a se situar nas mais claras entre as três categorias oficiais de cor: branca, preta ou parda. É notória a subestimação do número de afro-brasileiros no processo oficial dos censos, observada tanto por demógrafos como por cidadãos preocupados com políticas públicas. Os demógrafos também reconhecem a distorção das estatísticas oficiais, em que "(...) o grupo preto perde muito, o grupo pardo ganha muito mais do que perde, e o grupo branco ganha bastante sem perder nada" (Mortara, 1970: 458) Em 1989-90, importantes entidades da comunidade afro-brasileira lançaram a campanha "Não deixe sua cor passar em branco", com o objetivo de incentivar os negros a se identificar como tal diante do Censo. Se as estatísticas oficiais situam a população negra como aproximadamente 48% da população, as estimativas que levam em conta a distorção resultante do efeito da ideologia do embranquecimento ficam mais perto de 70% ou 80%, certamente a ampla maioria da população.

A categoria "pardos", uma espécie de "abrange tudo" utilizado desde 1940 para acomodar as classificações extremamente subjetivas utilizadas pelos brasileiros, é reconhecidamente desajeitada e artificial. Entretanto, quando os respondentes se classificaram de forma espontânea na PNAD de 1976, o resultado foi a citação de 136 categorias diferentes de cores, refletindo o esforço dos mais claros no sentido de não serem classificados nas mesmas categorias que os mais escuros (Vieira, 1995: 27).

Sem dúvida, contudo, a hegemonia pertence ao "moreno", termo que dá plena vigência às divagações subjetivas da consciência brasileira de cor. Pode ser usado para descrever pessoas muito negras ou mestiços bastante claros, dependendo da conclusão a que se queira chegar. Geralmente, porém, a conclusão desejada é evitar dizer "negro", "preto" ou "escuro", mesmo se a pessoa pode perfeitamente ser identificada como pertencendo a uma gama de variações de cor indicativa de sua origem africana.

Assim chegamos à verdadeira natureza da grande quantidade de designações de cores: o eufemismo. A carga pejorativa de palavras como "negro", "preto" e "escuro" faz com que qualquer uma dessas expressões seja tradicionalmente um insulto; gasta-se, desse modo, considerável esforço para evitá-las educadamente. Por outro lado, a noção geralmente pejorativa da africanidade é cuidadosamente extirpada da identidade nacional brasileira, com exceção de algumas instâncias muito específicas como a música, a culinária, o folclore e os esportes, onde é definida em grande parte por aqueles que não a criaram e onde é exibida como "prova" da harmonia racial e da tolerância da diversidade. Já que a identidade africana continua a ser vagamente considerada uma ameaça à unidade nacional, as expressões intimamente associadas à africanidade são evitadas, em parte por questão de lealdade de cidadania, e assistimos aos freqüentes protestos de que alguém não é negro nem afrodescendente nem de origem africana, mas brasileiro.

 

 

 

Vozes e perspectivas

Uma importante conseqüência da discriminação de fato num contexto marcado pela dança da decepção é que os excluídos perdem a sua voz. Aliás, se consideramos que o racismo não existe, com que legitimidade poderiam as suas vítimas levantar a voz? Assim, os brancos assumem a condição de porta-vozes dos interesses do negro, a sociedade lhes confere a legitimidade de falar por ele e quem desafia esse procedimento é acusado de racismo às avessas.

O seguinte diálogo ilustrativo (Cadernos Brasileiros, 1968: 70-2, grifos nossos) foi travado entre o presente autor e Clarival do Prado Valladares, integrante da elite branca baiana que em 1966 representou o Brasil no 1o Festival Internacional de Artes Negras, em Dacar, e que na ocasião era membro do Conselho Federal de Cultura e moderador do painel sobre a abolição da escravatura no contexto do qual o intercâmbio teve lugar.

Nascimento: Nós vemos, por exemplo, que a tábua de valores atual não é favorável ao negro. Por exemplo, não vemos um representante negro da cultura afro-brasileira no Conselho Federal de Cultura.

Valladares: Mas o senhor vê no Conselho Federal de Cultura homens muito preocupados com a cultura negra no Brasil, autores de obras definitivas.

N: Perfeito, mas acho que o negro também tem direito, ele mesmo, de advogar os seus problemas.

V: O negro no Brasil não se representa só pelo pigmento, o negro no Brasil é Brasil. (...) Creio que tenho, mais que os mais pigmentados, a consciência de um Brasil com os seus valores negros. (...) se o Conselho Federal de Cultura não tem caracteristicamente um negro pela epiderme, tem alguém que vela pela cultura negra com muito zelo.

N: Perfeito. Acho formidável e agradeço, mas isso justamente comprova o eterno paternalismo instalado na civilização brasileira. Não estou dizendo a de V. Excia., nem a dos conselheiros, estou mostrando é o eterno processo brasileiro.

O fato de que essa questão não pertence a um passado recente porém obsoleto foi ilustrado de forma gráfica em 1996, quando o Ministério da Justiça patrocinou um evento importante sobre ação afirmativa. Nas sessões plenárias, especialistas brasileiros em relações raciais, quase todos brancos, e estudiosos afro-americanos da ação afirmativa, vindos dos Estados Unidos, foram convidados a apresentar suas contribuições. Alguns dos afro-americanos (Gilliam, 1998) se sentiram incomodados ao dividir a mesa com autores de teses publicamente contestadas por aqueles que quase exclusivamente compunham a platéia bastante numerosa do evento: os intelectuais e ativistas do movimento negro. O proeminente antropólogo Roberto da Matta, por exemplo, dirigiu-se a essa platéia e declarou que a democracia racial, apesar de não ser plenamente realizada, era "uma idéia generosa (...) afinal, todos nós temos, desde a infância, pelo menos um amigo negro cujo carinho cultivamos a vida toda". A platéia bem podia perguntar "todos quem, cara pálida?", pois a afirmação de Da Matta constitui uma nítida expressão da identidade racial implicitamente assumida pelos porta-vozes da "sociedade brasileira" ao considerar as questões de raça, sobretudo ao falar desde as elevadas alturas da autoridade acadêmica. A identidade branca é, afinal, a marca da autoridade acadêmica e social.

Como observa o professor ganense Anani Dzidzienyo (1995: 355): "O sucesso da luta [afro-brasileira] depende em última instância da legitimação de uma perspectiva negra no discurso público nacional".

 

 

Reparações ao registro

Apesar dessa característica própria às relações raciais encenadas no palco da dança da decepção, nunca foi silenciada a voz afro-brasileira. A história da luta dos africanos pela liberdade e contra a discriminação no Brasil é intensa e extensa, cobrindo todo o território e toda a história nacionais, embora excluída das versões convencionais ainda ensinadas nas escolas. Embora o presente ensaio não seja o lugar adequado para documentar essa história, algumas reparações seriam oportunas no sentido de ajudar a restaurar o equilíbrio em favor da voz afro-brasileira.

Com toda a tendência de invocar a "questão social" ou o critério da cor, a questão racial é primordial para os afrodescendentes, pois o impacto da discriminação de fato ou de cor sobre as suas condições de vida é equivalente ao da discriminação de jure ou racial.

Mais importante, como observa Dzidzienyo (1995: 345): "as relações raciais (...) só podem ser compreendidas no contexto das relações de poder envolvidas. Aliás, é precisamente a dimensão do poder e da sua distribuição desigual que enquadra as relações raciais em todas as Américas." Os ganhos obtidos pelo movimento afro-brasileiro no contexto das relações de poder constituem a matéria da próxima parte deste ensaio, em que nos é solicitado considerar fatos e tendências recentes.

 

 

Novas perspectivas

Ao considerar as tendências recentes, destacam-se três fatos principais. Talvez o ganho mais destacado do movimento negro tenha sido a progressiva legitimação de sua perspectiva, a saber: que a questão racial constitui uma questão nacional de cidadania a exigir a articulação de políticas públicas específicas. Em segundo lugar, embora ainda muito longe de ser proporcional à sua participação na população, a presença afro-brasileira nas posições de poder, por eleição ou nomeação, vem aumentando. Em terceiro lugar, o racismo é visto cada vez mais como um assunto de direitos humanos.

Diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul, onde a opressão racial explícita deu legitimidade às lutas organizadas dos negros, a ideologia da democracia racial tende, insidiosamente, a privar o povo dominado de sua base de autodefesa e auto-elevação coletivas. Não existiu no Brasil uma tradição de movimentos de direitos civis integrados por negros e brancos. Esse fato foi exacerbado por dois períodos de regime autoritário (1937-45 e 1964-85) durante os quais os líderes da oposição de esquerda, a maioria brancos, ao lutar para superar os regimes militares, viam na questão racial não apenas a última prioridade possível como também uma ameaça à unidade das forças democráticas.

Em 1937, a Frente Negra Brasileira, movimento antidiscriminatório de massa com sua maior base em São Paulo, foi fechada junto com todos os partidos políticos e banida pelo Estado Novo num contexto de censura e repressão. Na década de 1960, enquanto nos Estados Unidos se implementavam programas contra a pobreza como resposta, em grande parte, ao movimento de direitos civis – movimento racialmente integrado sob a liderança da comunidade negra – , a ditadura militar brasileira se ocupava com a implantação de políticas que concentravam cada vez mais a riqueza, aumentando a desigualdade, ao mesmo tempo em que desencadeava uma repressão brutal contra as forças de oposição. O Congresso foi fechado em 1968; muitos líderes políticos de esquerda foram exilados; a questão racial foi definida como assunto de segurança nacional cuja discussão era proibida por decreto-lei.

Durante os dois maiores períodos de reorganização da democracia brasileira (1945-50 e 1977-85), os movimentos afro-brasileiros foram ativos, embora ainda solitários, nas suas campanhas por medidas e políticas capazes de combater o racismo. Na medida em que a ditadura do Estado Novo cedeu lugar à Assembléia Nacional Constituinte de 1946, as organizações negras propuseram, sem sucesso, a inclusão na nova carta nacional de medidas anti-racistas (Nascimento e Larkin-Nascimento, 1992, 1998). Na década dos 1970, entidades afro-brasileiras proliferaram em todo o país. Entretanto, apenas muito recentemente, nas décadas de 1980 e 1990, essas entidades vêm encontrando um apoio mais sólido entre aliados de outros movimentos sociais.

O movimento feminista é um exemplo. Lélia González (1986) e outras mulheres afro-brasileiras registraram suas experiências na década dos 1970 com um movimento feminista em grande parte insensível à questão racial. No ponto de vista delas, o feminismo representava as questões de mulheres brancas cuja libertação se baseava em grande parte na disponibilidade de uma mão-de-obra doméstica sub-remunerada, em sua maioria composta de mulheres negras. Embora seja inegável o papel do movimento feminista no sentido de criar espaços políticos que possibilitassem o exercício da diversidade, também é fato que muitas mulheres afro-brasileiras desenvolveram sua militância em primeiro lugar dentro do movimento negro, onde suas questões específicas de mulheres as levaram a se0 organizar de maneira independente. Com base nessa organização, desenvolveu-se um novo e mais rico encontro entre o movimento feminista e as entidades organizadas de mulheres negras. Em 1995, mulheres afro-brasileiras formaram uma parte visível da delegação brasileira à Conferência Mundial de Mulheres em Beijing. Recentemente, Conselhos dos Direitos da Mulher, em âmbito municipal, estadual e federal, têm sido criados como resultado da mobilização das mulheres, trazendo à cena a proposta de políticas públicas voltadas à questão de gênero. Hoje podemos testemunhar um lento progresso das mulheres negras na direção de sua inclusão numa representação quase inteiramente branca nesses Conselhos; entretanto, sua presença ainda está longe de ser proporcional à sua participação na população feminina. Suas preocupações, contudo, estão sendo reconhecidas como necessidades específicas legítimas, não apenas nos Conselhos, mas no movimento de mulheres como um todo.

O levantar da voz afro-brasileira fez-se acompanhar da autodefinição. As designações de cores foram progressivamente substituídas por termos que unem em vez de dividir, como "afro-brasileiro", "negro" e "afrodescendente". O movimento negro e seus aliados instituíram a convenção de se usar a soma das categorias oficias de cor "pretos" e "pardos" para quantificar a população negra. Deixando de lado os resquícios de fascinação acadêmica com as categorias de cor, os afrodescendentes do Brasil escolheram o próprio nome e procederam a tarefas mais importantes.

Entre os fenômenos recentes, destaca-se a emergência de um movimento afro-brasileiro composto de ONGs e líderes comunitários ativamente engajados nos sindicatos, nos partidos políticos, nas igrejas cristãs, nas comunidades-terreiros, nas organizações culturais e assim por diante. Levando a questão racial a cada contexto, muitas vezes enfrentando oposição e hostilidade ou indiferença, e de forma mais freqüente ainda recebendo declarações de solidariedade que não se traduzem em práticas concretas, com o tempo o movimento negro ganhou aliados e consciências. Talvez a mais visível expressão dessa tendência tenha sido a efetiva substituição do 13 de maio, aniversário da abolição da escravatura, pelo 20 de novembro, aniversário da morte de Zumbi ao defender a República de Palmares, como dia nacional de comemoração afro-brasileira. Desde a década de 1980, o país passou lentamente a seguir a liderança do movimento negro nesse assunto; hoje em dia, a mídia, as escolas públicas e particulares, as instituições culturais e organizações comunitárias agregam-se à celebração do 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, uma mudança que demonstra o poder da voz afro-brasileira unida.

Talvez o mais importante movimento social dos anos recentes seja o Movimento dos Sem Terra (MST). A despeito de sua fama como fenômeno recente, o MST traz à tona uma questão que mobilizou a população no início da década de 1960, durante a presidência de João Goulart, como uma das tão desejadas reformas de base. Surgiu no Sul do país o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, ligado ao antigo PTB, que exigia uma reforma agrária que hoje, quarenta anos mais tarde, ainda constitui reconhecida necessidade que se impõe como mais que urgente. Os afro-brasileiros em geral serão maioria entre os beneficiários de uma efetiva reforma agrária, e a liderança do MST vem reconhecendo, ao menos no discurso, a necessidade de combater o racismo. Palmares e Zumbi figuram no elenco invocado pela liderança do MST de modelos de luta libertária do povo brasileiro.

Além de conseguir progressivamente desacreditar o mito da "democracia racial", que ainda assim continua exercendo função de grande peso na consciência nacional, o movimento afro-brasileiro também vem desenvolvendo ações independentes de importante impacto. Um exemplo está nos pré-vestibulares para negros e carentes, que existem em vários Estados e municípios. Seu objetivo é aumentar o acesso ao ensino superior de jovens afro-brasileiros e pobres. Alguns desses grupos têm conseguido bolsas de estudos para alunos provenientes dos seus quadros.

A participação afro-brasileira nos corredores do poder – partidos políticos, cargos eletivos e agências governamentais – vem crescendo bastante. Em 1982, quando se realizaram as primeiras eleições legislativas diretas desde 1964, o autor do presente ensaio foi o único afro-brasileiro enviado ao Congresso com o mandato de representar essa população. Hoje, embora não chegue perto de uma representação proporcional, o peso da voz afro-brasileira vem aumentando, com várias nomeações administrativas, a eleição de dois governadores e uma vice-governadora, um número sempre maior de deputados estaduais e vereadores; três senadores e um número suficiente de deputados para se reunir, em 1997, num incipiente bloco parlamentar negro. A pressão exercida pelo movimento negro, por meio de seus representantes eleitos, influenciou a política externa brasileira em relação à África do Sul nas décadas de 1980 e 1990.

Em 1982, a idéia de políticas administrativas voltadas ao atendimento de necessidades específicas da população afro-brasileira era vista como fantasiosa e certamente racista. Entretanto, com a crescente e sempre mais efetiva mobilização e presença política do movimento negro (Nascimento, 1985), a idéia começou a evoluir. Têm-se criado conselhos consultivos e assessorias, dentro da estrutura dos governos e de seus órgãos administrativos, em um número cada vez maior de municípios e Estados. Em âmbito federal, o Ministério da Cultura criou uma Assessoria para Assuntos Afro-Brasileiros e depois uma Commissão para o Centenário da Abolição da Escravatura (1988), e desses órgãos nasceu a Fundação Cultural Palmares.

Já em 1988, o Congresso Constituinte aprovou várias medidas propostas pela comunidade afro-brasileira por meio de seus representantes eleitos. Entre outras, houve a medida que estabeleceu o racismo como crime inafiançável e imprescritível (Art. 5, par. XLII); a que determinou a demarcação das terras das comunidades quilombolas contemporâneas (Art. 68, Disposições Provisórias); a que anunciou a natureza pluricultural e multiétnica do país, estabelecendo que o Estado protegeria as manifestações da cultura afro-brasileira entre outras (Art. 215, para. 1); a que preservou como patrimônio nacional os locais dos antigos quilombos e seus documentos (Art. 216, par. 5); e a que determinou a inclusão das "contribuições das diversas culturas e etnias à formação do povo brasileiro" nas matérias de história do currículo escolar (Art. 242, par. 1).

Desde 1988, a promulgação da lei 7.716, que define o crime do racismo, bem como uma série de leis estaduais e municipais, muitas delas tratando da área do ensino (Silva Jr., 1998), vem atestando a força crescente do movimento.

A assistência às comunidades "remanescentes de quilombos" mencionada na Constituição (Art. 68, Disposições Transitórias) constitui uma área de políticas públicas que ilustra certa simbiose entre as comunidades afro-brasileiras, o movimento negro e a resposta governamental. Essas comunidades, espalhadas por todo o país, sofrem de condições de vida precárias, ao lado das ameaças de proprietários de terras vizinhas que avançam sobre suas terras, a propriedade das quais, na maioria das vezes, carece de documentação oficial. Desde que a Constituição de 1988 incorporou essa reivindicação do movimento negro, algumas delas ganharam a titulação de suas terras e algum tipo de assistência (CEN, 1996: 29-31; PR, 1998: 25-8).

Em 1991, o governador Leonel Brizola, do Estado do Rio de Janeiro, inaugurou a Seafro, primeiro e único órgão governamental de primeiro escalão, em âmbito estadual, criado para tratar especificamente da articulação e implementação de políticas públicas para a comunidade afro-brasileira. Entretanto, e de forma previsível, surgiu oposição na Assembléia Legislativa sob o lema do racismo às avessas. A pressão das alegações de inconstitucionalidade do decreto administrativo que criava a Secretaria impediu que esta fosse transformada em estrutura permanente, e a Seafro foi extinta pelo sucessor de Brizola.

Tal fato realça a importância histórica da criação da Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra de Belo Horizonte, instalada pelo prefeito Célio de Castro em dezembro de 1998 : esta foi aprovada pelo legislativo municipal.

Somente em meados da década de 1990 a questão da ação afirmativa chegou a ser discutida com seriedade. Sua primeira expressão no Brasil, na forma de um projeto de lei de ação compensatória apresentado à Câmara dos Deputados em 1983 (Nascimento, 1983-6, v. 1), não obteve amplo apoio e não foi levado à votação do plenário. Entretanto, com a legitimação da idéia de políticas públicas específicas, a noção da ação afirmativa também começou a ganhar terreno, e o projeto foi reintroduzido no Senado em 1997 (Nascimento, 1997-9, v. 1).

Em 1995, a celebração nacional e internacional do Tricentenário de Zumbi dos Palmares consolidou a maior abrangência da capacidade de mobilização afro-brasileira, demonstrada na Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que reuniu em Brasília entidades e militantes de todo o país. O Comitê Executivo Nacional da marcha apresentou ao presidente da República um Programa para Superar o Racismo e a Desigualdade Racial; esse documento ainda expressa uma síntese básica das reivindicações da comunidade negra (CEN, 1996). Talvez a mais alta expressão simbólico desse momento tenha sido a inscrição do nome de Zumbi dos Palmares na Galeria dos Heróis da Pátria, Panteão da Liberdade, Praça dos Três Poderes, em Brasília .

A essas alturas, a discussão e a proposição de políticas públicas antidiscriminatórias estava na ordem do dia (Munanga, 1996). Respondendo à realização da Marcha em Brasília e às suas reivindicações, o Governo federal criou o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI). Ao assinar o decreto que instituía o GTI (Silva Jr., 1998: 76), o presidente fez um pronunciamento oficial (PR, 1998) sem precedentes ao reconhecer a existência da discriminação racial e a necessidade de medidas concretas para combatê-la. O propósito do GTI é estudar, formular, propor, discutir e articular com os respectivos setores governamentais medidas de políticas públicas antidiscriminatórias nos planos executivo, legislativo e judiciário, e também estimular tais políticas na iniciativa privada, "zelando pelo desenvolvimento e a participação da População Negra" e "consolidando a cidadania da População Negra" .

Desprovido de recursos e pessoal suficientes, as perspectivas de o GTI produzir resultados significativos são dúbias, na melhor das hipóteses. Contudo, o GTI apresentou 46 propostas de ação afirmativa que estão sendo consideradas pelo Governo (PR, 1998: 62). Uma de suas funções potenciais seria aumentar a gama de órgãos governamentais envolvidos em políticas antidiscriminatórias. A Secretaria de Assuntos Estratégicos, por exemplo, já realizou um evento sobre ação afirmativa, e o Ministério do Exército já foi abordado no sentido de participar do reflorestamento das terras de Palmares – outra necessidade das comunidades quilombolas – e de sua demarcação (PR, 1998: 76-77).

Uma das mais destacadas iniciativas recentes na política governamental federal foi a criação, dentro do Ministério da Justiça, do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que trabalha em proximidade com o GTI e inclui nas suas Propostas de Ação Governamental uma seção sobre a População Negra composta de 22 objetivos de curto, médio e longo prazos (PNDH, 1998: 61). Essas propostas incluem o apoio à "discriminação positiva" e a "políticas compensatórias" para combater a desigualdade racial e melhorar a posição socioeconômica da comunidade afro-brasileira. Aliás, o GTI patrocinou uma série de seminários sobre ação afirmativa, e o Ministério da Justiça também organizou um evento internacional .

Que a necessidade da ação afirmativa seja discutida dentro do Governo é um grande passo adiante. Infelizmente, o próprio presidente tem contribuído para a predisposição geral contra a ação afirmativa ao identificá-la exclusivamente com a política de cotas e alegar que ela "implica em ignorar a avaliação do mérito" (PR, 1998: 29-30). Essa noção, embora errônea, é um dos fatores que mais pesam na resistência da sociedade brasileira às políticas antidiscriminatórias.

Importantes sindicatos têm desempenhado um papel relevante no combate a essa resistência ao contribuir para quebrar o tabu tradicional da esquerda segundo o qual tratar da questão da discriminação racial seria dividir a classe operária. Esses sindicatos vêm criando órgãos internos cuja literatura apóia a política antidiscriminatória (CUT/ CNCDR, 1997, 1998). Esse fato levou os sindicatos a comparecer, em 1994, diante da Organização Internacional do Trabalho (OIT), denunciando o Brasil pelo não-cumprimento da Convenção 111, 0sobre a Discriminação no Emprego, ratificada pelo país em 1965. Ao responder à citação, o Brasil requereu a cooperação técnica da OIT. Em 1996, o Ministério do Trabalho instituiu um Grupo de Trabalho pela Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTEDEO) , entidade tripartite, criada com o apoio técnico da OIT, para prosseguir no cumprimento dos compromissos do Brasil nos termos da Convenção 111. Um Grupo de Trabalho Multidisciplinar foi criado dentro do Ministério para "incorporar a questão da discriminação às ações e atividades rotineiras" (PNDH, 1998). Uma das importantes questões por ele tratadas é a promoção da igualdade por meio da negociação coletiva (MTb/ OIT, 1998). Até o momento, o Grupo de Trabalho tem se limitado a promover eventos de conscientização e discussão do assunto. Se vai ou não instituir medidas concretas, continua um item em aberto.

A inclusão de medidas para o avanço de ações contra o racismo no Programa Nacional de Direitos Humanos não apenas caracteriza a desigualdade racial como uma questão de direitos humanos como também identifica a não-discriminação como um direito de cidadania. Outra expressão dessa tendência foi a criação, no Governo do Estado do Rio de Janeiro, em janeiro de 1999, de uma Secretaria dos Direitos Humanos e da Cidadania com ênfase política na área da desigualdade racial.

 

 

Estratégias e oportunidades

Ao considerar estratégias e oportunidades, dividimos a discussão em três partes. Primeiro, consideramos o conteúdo das políticas antidiscriminatórias no Brasil e depois o contexto geral de políticas em que elas se inserem. Finalmente, avaliaremos as estratégias que favorecem a implementação efetiva da política antidiscriminatória.

  1. Políticas antidiscriminatórias: conteúdo

Limites de espaço impedem-nos de examinar em detalhe cada proposta de políticas públicas. Entretanto, certas áreas de ênfase são objetos de consenso geral. A primeira é a formação (profissional, técnica e acadêmica) e a capacitação para o trabalho antidiscriminatório. Numa economia cada vez mais tecnológica, a discriminação no emprego e na remuneração deve ser combatida não apenas com programas de conscientização que tragam à discussão os assuntos relevantes, mas também com o treinamento, a especialização e o desenvolvimento de habilidades. Além disso, a consolidação dos ganhos recentes e o desenvolvimento de novas propostas para o trabalho antidiscriminatório só serão possíveis com o treinamento e a multiplicação de líderes e quadros competentes. Programas dessa natureza, então, constituem importante iniciativa.

Intimamente ligada a esse ponto é a segunda prioridade: a educação. A desigualdade nessa área é menos uma questão de acesso inicial à escola do que de meios para permanecer nela. Assim, a luta contra o trabalho infantil é de fundamental importância; essa necessidade tem sido enfrentada em algumas áreas, como Brasília, por meio de programas de ajuda financeira às famílias para cada criança mantida na sala de aula. Associada e próxima é a necessidade de educação de jovens e adultos para compensar a falta de ensino no passado e para reduzir as taxas de analfabetismo. Os esforços educacionais devem também incluir o treinamento técnico e ocupacional e o ensino de segundo e terceiro graus. Programas específicos de preparação e admissão para a universidade também são necessários, de modo a ampliar o alcance dos esforços comunitários atualmente existentes, estimulando e apoiando a cooperação entre universidades e ONGs. As políticas públicas devem atender a necessidade de acesso dos afro-brasileiros ao ensino superior, compensando as perdas que resultaram da recente restrição dos benefícios fiscais que haviam possibilitado os subsídios à matrícula universitária conquistados pelas comunidades organizadas. Também são de fundamental importância a revisão dos currículos, inclusive uma atuação concreta para o desenvolvimento da pedagogia em torno dos temas transversais dos novos Parâmetros Curriculares Nacionais (MEC, 1998), e a revisão crítica dos livros didáticos e da literatura infanto-juvenil, projeto já iniciado pelo Ministério da Educação.

Uma terceira prioridade é a mídia. É bem conhecido o impacto da televisão e do rádio sobre o desenvolvimento da identidade individual e coletiva na sociedade moderna. As tendências racistas da programação telecomunicativa brasileira foram delineadas de forma gráfica em 1979, quando a empresa estatal de televisão angolana procurou uma parceria com o Brasil. O novo país africano foi obrigado a recusar a oferta de um dos programas mais populares da televisão educativa brasileira, baseado em um clássico de literatura infantil, O Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato, porque a estereotipização racista que permeia a obra a caracterizava como imprópria para crianças africanas. A maioria dos brasileiros está tão acostumada a tais estereótipos que mal conseguiu entender onde estava o problema. A pressão do movimento negro já resultou em reformulações da programação de algumas emissoras . A Fundação Cultural Palmares e o GTI estabeleceram parcerias com a TVE, canal educativo do Governo federal, pelas quais produziram minidocumentários e programas específicos. A administração federal atual determinou a inclusão nas suas imagens publicitárias de todos os grupos raciais que compõem a população brasileira. São necessários mais esforços para promover a eliminação da discriminação no setor privado de telecomunicações, onde o fantasma da censura, o poder quase absoluto de um único monopólio de telecomunicações e a contínua prevalência do mito da "democracia racial", complementada pela aversão ao "politicamente correto", têm exacerbado um estado geral de letargia nesse sentido.

Programas específicos de saúde dirigidos à população negra devem levar em conta não apenas as doenças geneticamente específicas, como a anemia falciforme, mas também as que têm maior incidência e impacto mais concentrado sobre os afro-brasileiros (miomas, hipertensão e doenças ocupacionais). As campanhas públicas na área da saúde, como os de AIDS e hanseníase, precisam contar com uma articulação especificamente dirigida à população negra, e é imperativa a necessidade de programas preventivos, como esgoto encanado, coleta de lixo e atendimento preventivo nas comunidades afro-brasileiras. Embora a administração federal tenha dado pequenos passos nas duas primeiras áreas com a realização de seminários e iniciativas de capacitação de funcionários da rede pública de saúde (PR, 1998: 62-71), a condição do sistema público de saúde continua deplorável, e os recursos arrecadados pelo imposto especial criado para viabilizá-lo têm sido aberta e impunemente desviados para outros setores (ITM, 1998; Roque e Corrêa, 1998).

Na questão da violência policial, as experiências de São Paulo e do Rio de Janeiro, durante a existência da Seafro, resultou na inclusão de cursos sobre discriminação racial e direitos humanos em programas de treinamento de policiais e campanhas de esclarecimento público, bem como na criação de delegacias especializadas para crimes de racismo. Esse continua sendo um terreno escorregadio, já que a instituição policial é repleta de brasileiros de ascendência africana cuja internalização dos estereótipos racistas é tão exacerbada a ponto de deixá-los menos sensíveis do que hostis às questões levantadas pelas ONGs afro-brasileiras e pelas organizações de direitos humanos (Silva, 1994).

Finalmente, a base econômica da comunidade afro-brasileira não pode continuar a ser composta apenas de empregos. Com exceção da Região Sudeste – particularmente São Paulo e, em menor escala, Rio de Janeiro – quase inexistem empresas independentes de propriedade de afro-brasileiros. É de primeira ordem a necessidade de estimular e apoiar o fortalecimento da capacidade de construir uma base sustentável de capital. A cooperação entre empresários afro-brasileiros e afro-americanos constitui perspectiva promissora .

Existe um problema que perpassa e recorta todas essas áreas: a necessidade de dados confiáveis para fundamentar a formulação de políticas públicas e a avaliação de seu impacto. A inclusão de informações sobre raça ou cor nas certidões de nascimento e de óbito, bem como em outros documentos vitais, comoregistros hospitalares, escolares e de outras instituições, cadastros de empregados, documentos oficiais e assim por diante, constitui uma preocupação primordial (CEN, 1996; Munanga, 1996; PNDH, 1998).

Algumas sugestões de impacto estão sendo negociadas com o IBGE, que se prepara para o Censo do ano 2000 (Sant’Anna, 1998): que o item censitário da "cor" seja associado a outro sobre "origem"; que seja revista a categoria "pardos" e que o termo "negro" seja utilizado para complementar as classificações por cor e origem ("preta/ negra", "negra/ africana"); que a composição racial/étnica seja registrada na população como um todo e não apenas em amostras, como tem sido o caso até agora; e que haja um treinamento explícito dos recenseadores sobre como lidar com a questão racial e de cor.

 

 

2. Perspectivas gerais de políticas públicas

Embora os avanços recentes sejam consideráveis, ainda estão longe de ser adequados para lidar com as enormes dimensões da desigualdade racial no Brasil. Ao avaliar estratégias, impõem-se como básicas três questões principais. Primeiro, as limitações da ação governamental são gigantescas, sobretudo no plano federal. Segundo, a eficácia da parceria com a sociedade civil depende de uma avaliação crítica por parte das ONGs e de fiscalização, por parte da cidadania, sobre o progresso e a eficácia das políticas governamentais em todos os níveis. Terceiro, continua muito grande, na sociedade brasileira, a resistência não apenas aos programas antidiscriminatórios, mas também à própria discussão do racismo como questão social legítima. De forma mais ampla ainda, prevalece a resistência à discussão e à ação na área dos direitos humanos em si, uma proposição geralmente identificada com a idéia de paparicar os criminosos.

Duas dimensões inter-relacionadas emergem dessas considerações: a necessidade de fortalecer a voz das ONGs no sentido de influenciar a ação governamental e a de reestruturar as prioridades governamentais no sentido de políticas efetivas para eliminar as desigualdades. A reestruturação das políticas se impõe em duas frentes: primeiro, as políticas de combate à fome, à miséria, às desigualdades de renda e de condições de vida (habitação, saúde, educação, saneamento, água encanada); segundo, as políticas afirmativas ou específicas, como aquelas discutidas na subseção acima, tratando diretamente das desigualdades raciais em si.

O primeiro grupo de políticas beneficiaria especificamente os afro-brasileiros, de longe a maior parte dos pobres e necessitados. Entretanto, tem sido amplamente demonstrado (ITM, 1998; Roque e Corrêa, 1998) que os políticas macroeconômicas aprovadas pelo FMI e recentemente perseguidas pelo Governo federal são inteiramente inadequadas a esse objetivo. A estabilização monetária fundamentada na manutenção das taxas de juros mais altas do mundo (por volta de 50%); a reforma fiscal ancorada no desmantelamento geral do Estado e na privatização de empresas estatais lucrativas, sem estabelecer critérios de regulamentação dos monopólios e oligopólios de capital privado assim criados; os cortes nos gastos sociais e a demissão em massa de funcionários públicos; a desnacionalização da economia e a concentração progressiva do capital; o estímulo às importações e o desestímulo à produção nacional – tais políticas trazem como resultados a recessão, o desemprego e a corrosão da capacidade produtiva nacional. Tudo isso ocorre no contexto geral de cortes nos serviços públicos, sobretudo nos sistemas, já deteriorados e sem recursos, da saúde e da educação. A arrecadação de recursos do orçamento federal é improvisada com impostos presumidamente temporários, como o CPMF , ao passo que recursos oficiais do orçamento são utilizados para financiar bancos privados falidos. As pensões e aposentadorias, cujo valor real já havia diminuído sensivelmente, estão sendo ainda mais oneradas e restringidas. A crise cambial de fevereiro de 1999 apenas sublinhou a natureza artificial do tão aplaudido "sucesso" da administração atual no combate à inflação; já era evidente em 1997-8 que os índices gerais de desigualdades vinham crescendo desde 1993 (Roque e Corrêa, 1998) e que essas políticas favorecem mais o capital transacional do que a empresa, a economia ou o emprego brasileiros (Salomão e Gonçalves, 1998).

Estratégias macroeconômicas favorecendo o crescimento não serão suficientes para reverter essa situação; impõe-se a necessidade de políticas de apoio à produção nacional e à exportação. As reformas fundiária e agrária constituem necessidades imediatas urgentes, incluindo a restrição da impunidade na violência rural. A efetivação de programas de renda mínima é imperativa. Desde 1991, foram apresentados ao Congresso dois projetos de lei propondo a criação de programas de renda mínima; nenhum chegou à votação até o momento em que redigimos o presente texto. De oitenta programas semelhantes em plano estadual e municipal, quatro estão sendo implementados, e somente um deles como programa permanente . Se as propostas de renda mínima encontram resistência, a esperança de se aprovarem programas complementares de redistribuição de renda, cuja necessidade está manifesta nos extremos de desigualdade exibidos pelo Brasil, é menor ainda.

Uma medida crucial é continuar o trabalho das ONGs que estão monitorando e fiscalizando as políticas econômicas, como por exemplo no contexto do programa de Monitoramento do Desenvolvimento Social em associação com as Nações Unidas (ITM, 1998).

 

 

3. Estratégias para a implementação de políticas antidiscriminatórias

Quanto ao segundo grupo de políticas, aquelas que tratam das desigualdades raciais propriamente ditas, o seu efeito positivo necessariamente será limitado dentro desse contexto geral. Aliás, o PNDH (1998: 45) praticamente admite esse fato ao anunciar que seu trabalho irá enfatizar os direitos civis num contexto em que os direitos sociais e econômicos estão severamente restritos pela desigualdade social e é provável que continuem assim.

Não podem ser ignorados, contudo, os programas específicos instituídos em resposta às reivindicações da comunidade afro-brasileira organizada e dirigidos à política pública relativa à desigualdade racial. Uma relação simbiótica vem se desenvolvendo entre a ação dos militantes e ONGs afro-brasileiros, de um lado, e a articulação de políticas governamentais – mas não, na maioria dos casos, a sua implementação – do outro. A linguagem das medidas das instituições governamentais e das leis promulgadas foi desenvolvida em grande parte por influência das ONGs, dos intelectuais e dos ativistas do movimento negro, que participam diretamente na sua formulação ou indiretamente, ao contribuir com suas ações e seus escritos. Entretanto, a capacidade desse movimento de criar pressão suficientemente eficaz para conduzir à aplicação concreta das medidas, e depois para fiscalizar essa aplicação, é gravemente limitada pela falta de recursos financeiros, pessoal e infra-estrutura. A maioria dessas políticas ainda não encontrou o caminho de sair do papel para a ação concreta.

Assim, uma estratégia importante será assegurar para o movimento afro-brasileiro o peso político suficiente para garantir a continuidade dos ganhos conquistados na política administrativa, inclusive a manutenção e o desenvolvimento dos órgãos e programas governamentais já criados em âmbito municipal, estadual e federal; o envolvimento de novos recursos governamentais (infra-estrutura, pessoal, setores administrativos) nos programas antidiscriminatórios; e a colocação em prática dos dispositivos legais pertinentes. Dois desafios se apresentam nesse contexto, e são grandes: primeiro, superar a resistência da sociedade à política de direitos humanos e de ação afirmativa; segundo, conseguir prioridade para essas políticas nas listas de tarefas das administrações governamentais. O exemplo da Secretaria de Assuntos da Comunidade Negra de Belo Horizonte será fundamental nesse aspecto.

Essa estratégia deve ser acompanhada pelo fortalecimento das próprias entidades afro-brasileiras, pois a eficácia do trabalho dos órgãos governamentais depende da participação crítica e cooperativa de sindicatos, entidades profissionais, ONGs e grupos comunitários. Estes, por sua vez, devem usar a existência dos órgãos governamentais, e o material por eles produzido, para levar adiante o seu trabalho de legitimar e perseguir os objetivos do movimento. Aliás, o resultado mais visível dessas agências governamentais até hoje tem sido a produção de material (PNDH, 1998; PR, 1998; MTb/ OIT, 1998; MEC, 1998).

Dois obstáculos à mudança efetiva são especialmente formidáveis no Brasil. Um deles é a falta de partidos políticos fortes e bem organizados, capazes de traduzir em ação executiva e legislativa as reivindicações dos movimentos sociais incorporadas em seus programas. A democracia no Brasil sofre o grande entrave do poder ainda vigente dos coronéis corruptos e das elites entrincheiradas, sobretudo no Norte, no Nordeste e nas regiões periféricas, onde está concentrada a população afro-brasileira. Outro grande obstáculo é o progressivo desmantelamento do Estado, que em grande parte deixa impotentes ou extingue órgãos governamentais que poderiam ser encarregados da implementação de políticas públicas de ação afirmativa.

O papel da legislação ant-discriminatória já foi questionado (Dzidzienyo, 1995) numa sociedade em que a existência de normas legais retóricas, porém ineficazes, nunca garantiu a igualdade racial. Mas as leis inscritas na nova ordem social brasileira têm um papel importante, embora sabidamente não em função de sua efetiva execução. Elas constituem um recurso e uma arma da sociedade civil organizada para o exercício de seu papel fundamental de participação crítica na fiscalização do cumprimento de dispositivos legais por ela conquistados que implicam a formulação de políticas de Estado. Além disso, a legislação constitui importante reflexo do progresso – e instrumento para a sua continuação – da tarefa de superar a resistência social à idéia da necessidade de medidas antidiscriminatórias. O contexto internacional se destaca como especialmente importante nesse aspecto: a ação já visível rumo ao cumprimento da Convenção 111 pode ser vista como uma espécie de modelo para a articulação de novas iniciativas.

No final, o papel das organizações comunitárias sem dúvida permanecerá estrategicamente imperativo. Será, como tem sido, o próprio povo afro-brasileiro a puxar as instituições governamentais e não-governamentais na direção de medidas para construir a igualdade. Talvez nesse aspecto o mito da "democracia racial" possa ser visto de forma otimista como vantagem inicial relativa. Nas sociedades onde as vitórias na área dos direitos civis provocaram mudanças nas estruturas institucionais, as dificuldades de denunciar e combater a discriminação depois dessas mudanças tendem a se assemelhar àquelas enfrentadas pelo movimento afro-brasileiro até o momento. A negação da natureza racial das desigualdades, a apropriação pelas forças conservadoras do discurso da igualdade e as alegações de que a política antidiscriminatória constitui um "racismo às avessas" são elementos que levaram a co-autora do presente ensaio a indagar, anos atrás, se as formas de discriminação pós-Bakke nos Estados Unidos não aproximam o caso desse país à democracia racial brasileira (Larkin-Nascimento, 1980). Da mesma forma, a África do Sul democrática enfrenta hoje a necessidade de políticas de Estado para reverter as desigualdades raciais de fato, não estando mais intatas as estruturas do apartheid; as reivindicações dos excluídos são bastante urgentes. Tais situações já são familiares aos militantes afro-brasileiros, que insistem em inventar maneiras de ganhar terreno a despeito delas.

No Brasil, o legado da "democracia racial" produziu duas dificuldades observados hoje nos Estados Unidos por nosso colega Charles Hamilton (1999): o pesado ônus da prova da discriminação exigida para justificar ou gerar políticas públicas e a não-responsabilização da sociedade branca pelo racismo do passado. Da mesma forma, o estigma cínico que Hamilton observa contra o "politicamente correto" também prevalece aqui. Na África do Sul, esses elementos podem ser contrabalançados, talvez, pela memória nítida e pela condenação internacional do apartheid, que deixariam menos campo de dúvida com respeito à necessidade da política de ação afirmativa e sua justeza básica. Mais importante, porém, é a dimensão política: como maioria eleitoral e partidária na África do Sul, os africanos estão formulando e implementando a política pública. A natureza dessa situação implica que as limitações impostas pela equação do poder político sejam menos constrangedoras do que nos Estados Unidos ou no Brasil. Assim, embora o movimento afro-brasileiro venha conquistando grandes avanços, ainda é verdade aqui, como nos Estados Unidos, que "(...) as relações raciais simplesmente não constituem prioridade importante na agenda nacional" (Hamilton, 1999). Na medida em que a maioria afro-brasileira superar os efeitos do tabu da democracia racial, conseguirá, de forma crescente, a colocar as suas preocupações nessa agenda. Entretanto, decerto ainda tem pela frente um longo caminho.

 

 

Rumos

Embora a dança da decepção ainda coloque grande peso nas relações sociais do cotidiano, parece certo o avanço na direção de um tempo em que as invocações da natureza multirracial da sociedade brasileira possam ser reformuladas em termos que reflitam uma autodefinição afro-brasileira legítima. A ação política já deu resultados expressos em vitórias que incluem mudanças substantivas na política governamental, na legislação e na avaliação acadêmica da situação. Devemos usar essas mudanças, por sua vez, para fortalecer ainda mais a voz afro-brasileira, que vem comandando cada vez mais a sua própria coreografia na parceria com outros setores da sociedade civil organizada. Sem dúvida, esse fato está mudando a face da sociedade brasileira e o seu discurso. Embora a eliminação da desigualdade permaneça uma possibilidade remota, o reconhecimento da necessidade de enfrentar suas dimensões específicas constitui um passo importante na direção de viabilizar as políticas exigidas para atingir esse objetivo.

 

 

Conclusão

W. E. B. DuBois anunciou, em 1903, que este seria o século da linha de cor. É inegável que esses cem anos testemunharam os esforços dos africanos em todo o mundo no sentido de dar fim às múltiplas formas de dominação que caracterizam o racismo, o colonialismo e seus legados ultimamente expressos no neoliberalismo e na globalização. Os africanos em todo o mundo desempenharam um papel central no desenvolvimento dos direitos humanos internacionais e do direito e da solidariedade internacionais. A emergência e o progresso dessas duas tendências marcaram o mundo de forma indelével.

O novo milênio testemunhará cada vez mais o surgimento da voz dos afro-brasileiros e dos africanos em todas as Américas, assim como na Ásia, na Europa e na África. Sua participação no processo de desenvolvimento humano vai, sem dúvida, demonstrar a força e o peso de seu potencial para superar os obstáculos da discriminação racial.