Resumo Executivo
Para Além do Racismo
Abraçando um futuro interdependente
Brasil, África do Sul e Estados Unidos
Mais do que a rejeição da cor da pele de um povo, o racismo se constitui na negação da história e da civilização desse povo; a rejeição de seu ethos, de seu ser total. A diversidade, contudo, é a condição universal da existência humana, e a riqueza da experiência humana se funda em grande parte na interação, na intercomunicação e no intercâmbio entre culturas específicas. O objetivo verdadeiramente revolucionário não é erradicar as diferenças (...) [mas antes] evitar que elas sejam transformadas em pedras fundamentais da opressão, da desigualdade de oportunidades ou da estratificação social.
—Abdias do Nascimento e Elisa Larkin Nascimento
Comparative Human Relations Initiative
Southern Education Foundation
Superar o racismo: uma necessidade do século XXI
Brasil, África do Sul e Estados Unidos têm mais de 125 milhões de cidadãos игры про корабли identificados como afro-descendentes pela ascendência e/ou cor que há muito tempo têm sido submetidos ao racismo, à discriminação racial e a outras formas de tratamento desumano. Seus esforços no sentido de se livrarem, e de livrarem seus países, do racismo representam uma das histórias de direitos humanos mais transcendentais e esperançosas do século XX.
No início do século XX, o racismo e a supremacia branca eram aceitos como norma pela maioria dos brancos no Brasil, na África do Sul e nos Estados Unidos. Cem anos depois, as coisas mudaram. As pessoas afro-descendentes, ajudadas por diversos aliados, fizeram avanços significativos na garantia dos direitos iguais, e estão exigindo um tratamento igual àquele dado aos brancos. O apartheid acabou na África do Sul. Nelson Mandela está livre, e a África do Sul tem um governo inclusivo, não-racial e democrático. Nos Estados Unidos, o movimento de direitos civis --- e as leis e políticas públicas que gerou --- erodiram a segregação racial legalmente sancionada e ajudaram a criar uma classe média negra. O Brasil, país erroneamente chamado de "democracia racial", já começou a reconhecer a presença da discriminação racial contra afro-brasileiros e a desigualdade codificada pela cor. Hoje, nestas nações e no resto do mundo, existe um consenso crescente de que todos os seres humanos têm direitos humanos básicos, e que nenhum grupo humano é "superior" ou "inferior" a outro em termos de intelecto ou valor com base na "raça".
Definição do racismo e da discriminação racial
Como sugere a citação na capa, "racismo" é um termo amplo utilizado para descrever muitos e variados tipos de crenças e atos que negam a igualdade fundamental de todos os seres humanos, em função da percepção de diferenças de "raça", ascendência, cor ou aparência. O racismo é a utilização de tais características superficiais para privilegiar de maneira injustiça grupos ou indivíduos em detrimento de outros que parecem ser diferentes.
A discriminação racial é o racismo em ação. Os instrumentos internacionais definem a discriminação racial como:
Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica que tenha como finalidade ou efeito anular ou impedir o reconhecimento, gozo ou exercício, em pé de igualdade, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social e cultural, entre outros, da vida pública.
Apesar dos avanços, o racismo e a discriminação ainda não morreram, e suas conseqüências também persistem como fontes de sofrimento, conflito violento, pobreza, tensão social e desperdício de recursos—tanto humanos quanto financeiros—no Brasil, na África do Sul, nos Estados Unidos e no resto do mundo.
Mesmo após as mudanças conquistadas no século XX, surgiram novas formas e manifestações dessas crenças, políticas e práticas antiquadas e disfuncionais. Enquanto isso, e cada vez mais, forças sociais em nível global estão interagindo no sentido de combater o racismo e a discriminação, enfrentando novos problemas e desafios e criando novas oportunidades:
Essas tendências sugerem uma conclusão comum: está chegada a hora de deixar o racismo para trás. Não se trata apenas de fazer a coisa certa ou moralmente apropriada; também é uma questão de necessidade econômica e social, do próprio interesse de diferentes camadas sociais esclarecidas, se é que se pretende criar uma ordem mundial mais pacífica e eqüitativa.
O trabalho e as publicações da Iniciativa Comparativa de Relações Humanas exploram as questões contemporâneas relacionadas à raça e direitos humanos no Brasil, África do Sul e Estados Unidos, documentam mudanças e analisam as implicações para esforços conjuntos no futuro no sentido de "superar o racismo."
A Iniciativa Comparativa de Relações Humanas (Comparative Human Relations Initiative), um projeto iniciado em l995 pela Fundação Sulista de Educação (Southern Education Foundation) de Atlanta, Georgia, Estados Unidos, uma organização civil sem fins lucrativos, representa uma colaboração única entre povos e instituições do Brasil, África do Sul e Estados Unidos. Em parceria com o Instituto para a Democracia (Institute for Democracy) na África do Sul, o Gabinete do Diretor da Faculdade de Humanidades da Universidade da Cidade do Cabo e uma coalização informal de indivíduos e grupos no Brasil, a Iniciativa já realizou reuniões em cada um dos três países, conduziu pesquisas extensas e elaborou publicações para compartilhar seus achados com um amplo público internacional. O trabalho da Iniciativa é orientada por um Grupo Internacional de Trabalho e Consultoria, com pessoas de várias disciplinas e carreiras dos três países.
O objetivo da Iniciativa é combater todas as formas de preconceito, inclusive a discriminação injusta com base na cor, raça, etnicidade, ascendência, gênero ou origem nacional. Estas e outras formas de preconceito estão interligadas e interagem e devem ser arrancados e desenraizadas em conjunto. Enquanto o peso da opinião científica define inequivocamente que todos os seres humanos são mais semelhantes do que diferentes, e que a "raça" não é marcador nem do caráter, nem da capacidade intelectual, a raça percebida ou a aparência ainda servem em maior ou menor grau como critérios de validação social nestas nações.
O uso de uma lente comparativa é útil para compreender o racismo e como combatê-lo. Uma comparação não implica semelhança onde não existe; pode sublinhar a diferença. As comparações nos ajudam a enxergar mais claramente na realidade dos outros aquilo que podemos deixar de ver, ou interpretar incorretamente, na nossa própria realidade.
A Iniciativa também está envolvida nos esforços no sentido de difundir e promover o engajamento na Conferência Mundial da Organização das Nações Unidas Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, a ser realizada na África do Sul em 200l. O evento servirá como oportunidade importante para desenvolver respostas globais ao racismo e à discriminação, que são, afinal, violações de normas internacionais de direitos humanos e de instrumentos e leis nacionais afins no Brasil, África do Sul e Estados Unidos, entre outras nações.
Três Nações na Encruzilhada:
Brasil, África do Sul e Estados Unidos
Brasil, África do Sul e Estados Unidos são nações democráticas com populações grandes, multi-raciais e multi-étnicas. Embora estas nações estejam entre as experiências mais importantes do mundo em como a diversidade e a democracia podem funcionar pelo bem comum, os legados da escravidão e do colonialismo no passado e os efeitos atuais da discriminação passada e presente continuam afetando a dinâmica da distribuição de oportunidades. Disparidades grosseiras entre "brancos" e "negros" estão presentes em todos os lugares.
O Brasil tem uma população atual de mais de 176 milhões de habitantes. Enquanto colônia de Portugal, importou mais escravos africanos do que qualquer outra nação do Hemisfério Ocidental, e foi a última nação do mundo a abolir a escravidão (em l888), depois de quase 450 anos de exploração.
Hoje, o Brasil tem a maior população de afro-descendentes fora do continente africano. Sua economia está entre as dez maiores do mundo. Também tem uma das sociedades mais desiguais do mundo, medida pela má-distribuição de renda. Os 20% mais ricos da população (pessoas cuja aparência se assemelha ao fenótipo europeu) possuem dois terços da renda nacional; os 20% mais pobres (majoritariamente negros e pardos) recebem menos de 3%.
África do Sul, uma nação de mais de 41 milhões de habitantes, experimentou regimes coloniais e nacionais baseados na supremacia branca durante mais de 350 anos. Pessoas de ascendência européia criaram o sistema mais elaborado de opressão racial no mundo moderno, violando sistematicamente e de todas as maneiras os direitos humanos dos africanos negros e "de cor". Estas políticas acabaram em 1994 com eleições livres e a instalação de um governo genuinamente democrático, mas um legado de desigualdade, pobreza, desconfiança e subdesenvolvimento persiste, prejudicando milhões de cidadãos.
África do Sul tem uma das maiores economias da África, porém quase dois terços da renda total do país vão para os 20% mais ricos da população, enquanto os 20 % mais pobres (todos os quais são negros ou "de cor") recebem apenas 4%.
Nos Estados Unidos, a escravidão durou mais de 240 anos, apenas para ser substituído por um sistema de supremacia branca que embutiu a segregação legal e a discriminação racial na vida americana durante mais de um século. Há menos de 40 anos existe um arcabouço de leis significativas contra a discriminação, e os esforços continuam no sentido de garantir seu cumprimento.
Os Estados Unidos são a única super-potência remanescente no mundo, com riquezas e poder sem paralelo. Os 20% mais ricos da população recebem um terço da renda do país, enquanto os 20% mais pobres, onde estão agrupados um número desproporcional de afro-americanos, recebem apenas 5%. E o que é pior, a desigualdade continua aumentando.
Nas três nações, as mulheres de todas as raças sofrem diversas formas de tratamento injusto e discriminação. Embora as mulheres brancas tendem a ter mais privilégios que as negras, ambos grupos têm problemas comuns que exigem respostas urgentes.
O racismo e o sexismo estão entrelaçados nas culturas, normas, histórias, arranjos institucionais, práticas e leis destas nações, em graus variados. Os esforços no sentido de combater o racismo e o sexismo devem continuar com vigor renovado, e devem ser encontradas maneiras novas e melhores de contrapor os efeitos negativos numa aldeia global em transformação rápida.
Lições comuns sobre "raça"
Raça é uma idéia
A maioria das pessoas usa de vez em quando a idéia de raça, ou de aparência relacionada à raça, como maneira rápida de identificar a si mesmos ou aos outros. Entretanto, poucos seriam capazes de dar uma definição cientificamente defensável daquilo que "raça" é ou deixa de ser.
A ciência nos ensina que existe apenas uma raça, a "raça humana". Todos somos iguais debaixo da pele. As características superficiais, como a cor, a textura do cabelo ou o fenótipo não têm nada a ver com a inteligência ou o caráter. Se os negros são desproporcionalmente pobres e os brancos desproporcionalmente privilegiados no Brasil, África do Sul ou Estados Unidos, não significa que os negros sejam "inferiores" ou os brancos "superiores". Significa que o grupo dominante não achou por bem compartilhar os recursos com outros de aparência diferente, e/ou que levantou barreiras contra os direitos e privilégios iguais para negros. Nesse sentido, as desigualdades gritantes entre brancos e negros não são "naturais", ao contrário, têm sido "nutridas".
Se aceitamos ou não a responsabilidade pela criação da hierarquia racial no Brasil, África do Sul ou Estados Unidos, todos devemos compartilhar a responsabilidade de desfazer os efeitos do racismo. Do contrário, nos tornamos parte do problema.
Cor, e a construção de "raça"
Há muitas formas de identidade. A identidade racial pode ser gerada de dentro, ou imposta de fora, por outros. Embora o conceito de raça tenha um conteúdo científico restrito, a raça e as características ligadas à aparência têm efeitos reais sobre a vida das pessoas.
No Brasil, a miscigenação entre brancos e africanos (principalmente entre homens brancos e mulheres africanas vulneráveis) era sancionada e incentivada no intuito de "branquear" a população. Ao contrário dos Estados Unidos, não houve uma segregação legal após a abolição da escravidão no Brasil. Baseado em disparidades de poder e no sexismo, a prática do sexo inter-racial continuou ao longo do tempo, alimentando o mito de que o Brasil fosse uma grande "democracia racial", e criando uma realidade na qual as pessoas de pele escura são exploradas e impedidas de ter acesso a oportunidades que são aproveitadas rotineiramente pelos seus contemporâneos de pele mais clara. Em outras palavras, o Brasil se tornou uma grande "pigmentocracia", não tanto pela lei, mas por questões de prática e cultura.
Nos Estados Unidos e na África do Sul, a idéia de "raça" está ligada à linhagem. Por exemplo, independentemente de aparência, nos Estados Unidos, a pessoa que tiver qualquer grau demonstrável de ascendência africana é considerada "afro-americano". Hoje, a maioria dos afro-americanos é de ascendência "mista" (i.é., tem antepassados africanos, europeus e/ou indígenas). Entretanto, são vistos pela maioria como negros, independentemente da sua aparência real. Na África do Sul, a maioria da população é de negros africanos, mas também existem muitas pessoas de ascendência mista (européia, africana e/ou asiática) que são consideradas "de cor", diferente de "negro".
Raça e racismo: formas diferentes, conseqüências semelhantes
Não importa como se define raça, os privilégios e a pobreza são codificados pela cor no Brasil, África do Sul e Estados Unidos. Os dados sobre disparidade falam por si só. Historicamente, as pessoas de aparência européia monopolizaram o poder e os recursos sociais, políticos e econômicos. Apenas recentemente o padrão de subserviência negra e de dominância branca tem sido questionado.
Muitas pessoas tentam fazer vista grossa para o privilégio de fato baseado na raça ou na cor da pele. Assim, o racismo torna-se "invisível" através da negação. Mas o racismo não desaparece por um ato de vontade. Na realidade, torna o racismo mais difícil de combater. "É muito difícil acordar alguém que finge estar dormindo," nos ensina o Arcebispo Desmond Tutu. Da mesma forma, aspirar ao "daltonismo racial" não serve como plano de ação para eliminar as conseqüências reais da discriminação racial e das oportunidades desiguais.
O legado do apartheid na África do Sul ilustra muito bem os efeitos do racismo desenfreado e da discriminação: injustiça e desigualdade; pobreza e uma economia subdesenvolvida; uma base estreita de consumidores; falta de mão-de-obra qualificada; falta de verbas públicas e investimentos privados para construir uma rede de apoio social adequada e violência e repressão. Seja nos guetos americanos, nas favelas brasileiras ou nos townships sul-africanos, é evidente que o custo do racismo é excessivamente alto.
A única constante é a mudança
A mudança e o progresso no combate ao racismo e aos seus efeitos insidiosos são possíveis.
Certa vez o sociólogo internacional Gunnar Myrdal usou a metáfora de um "círculo vicioso" declinante para descrever de que maneira os fatores como raça, pobreza e analfabetismo interagem para oprimir os afro-descendentes. Mas também falou de um "círculo virtuoso" pelo qual a transformação rende bons resultados. Quando muitos fatores se interligam, a mudança pode desencadear uma mudança para o bem ou para o mal.
Muitos fatores têm interagido no Brasil, África do Sul e Estados Unidos no sentido de oprimir tanto as mulheres de todas as raças quanto as pessoas de ascendência africana. A lista não é pequena: avareza, disparidades no poder de negociação, uso do poder estatal para sancionar a subordinação, fatores ambientais e vantagens geográficas, entre outros. No entanto, muitos elementos "virtuosos" têm interagido para criar um momento poderoso em direção a uma mudança positiva e à libertação. Cada vez mais afro-descendentes têm subido nas escalas econômica e política. Estão conquistando mais poder e acesso a recursos e aumentando a capacidade de desafiar o racismo, o sexismo e a discriminação nos seus próprios países e no resto do mundo. Existe um corpo crescente de conhecimentos sobre políticas públicas e ações privadas – na elaboração, reforma, execução e cumprimento das leis, no combate à pobreza, no investimento na saúde das mulheres e na expansão das oportunidades educacionais - que podem ser ações eficazes para eliminar a discriminação racial, a pobreza e a desigualdade. Os avanços tecnológicos podem facilitar o compartilhamento de idéias e a colaboração na superação de barreiras antigas. A determinação dos afro-descendentes na conquista da liberdade permanece forte, garantindo que a inteligência, o compromisso e a dedicação à causa da igualdade humana sejam fatores decisivos na solução de problemas atuais e futuros.
As mudanças globais também estão criando novos imperativos para as sociedades e sistemas no sentido de mudar o quadro e superar o racismo.
Imperativos para um mundo novo e interdependente
Neste começo de um novo milênio, as forças globais emergentes concorrem para moldar o futuro. Algumas forças ameaçam dividir, empobrecer e criar "vencedores" e "perdedores", enquanto outras acenam com possibilidades de um futuro em que a inclusão torne-se uma necessidade econômica e prática para servir ao bem comum.
Economia global e revolução tecnológica
Gostemos ou não da economia global emergente, do triunfo do capitalismo global ou dos avanços tecnológicos, as mudanças que estão transformando o mundo são um fato. Não temos outra alternativa senão combater os efeitos negativos e tirar proveito dos aspectos positivos.
Uma coisa é certa: na economia global, a pobreza, a falta de saúde, o desemprego e a falta de acesso à escola para os afro-descendentes são obstáculos que atrasam a realização das metas do desenvolvimento nacional. Estimativas recentes sugerem que Brasil, África do Sul e Estados Unidos poderiam ganhar um aumento conjunto de produtividade econômica equivalente ao Produto Interno Bruto (PIB) da 15a maior economia do mundo, se eliminassem a discriminação racial que tem marginalizado os cidadãos afro-descendentes. Cada uma das nações precisa dos talentos e habilidades dos negros e de outras pessoas menos favorecidas para poder competir efetivamente por investimentos e crescimento econômico no mercado global.
Governo, organizações não-governamentais, empresas e outros setores têm um papel e uma obrigação no sentido de pressionar para aumentar as respostas contra a discriminação sofrida pelos afro-descendentes. Promover o progresso dos negros é bom para os negócios, bom para o crescimento nacional, bom para os negros e bom para todos os povos das nações às quais pertencem.
Migração e mudanças demográficas
No Brasil, África do Sul e Estados Unidos, a população branca está diminuindo numericamente e envelhecendo. As populações negra e não-branca estão crescendo mais rapidamente, e são mais jovens. Se estas tendências continuarem, até meados do século XXI os brancos serão minoria numérica nos três países. No futuro, como conseqüência, muitos brancos vão se aposentar e se tornarem pensionistas em países que dependerão de trabalhadores negros e não-brancos para financiar os programas de previdência social e sustentar a produtividade nacional, gerando os recursos para fundos de pensão privados.
Tais tendências levantam pelo menos duas perguntas importantes: primeiro, a força de trabalho predominantemente negra ou não-branca possui uma base suficiente de saúde, educação, qualificações e capacitação para dirigir uma economia produtiva e em expansão de maneira a sustentar adequadamente o crescimento dos fundos de aposentadoria e os benefícios para um número desproporcional de aposentados brancos? Segundo, o eleitorado predominantemente não-branco em cada país estará disposto a sustentar tais aposentadorias para a população branca mais idosa?
Estas não são questões hipotéticas. Apontam diretamente para a necessidade de investir hoje na educação e no bem-estar dos negros e de outros grupos vulneráveis para poder assegurar um futuro melhor para todos no mundo interdependente de amanhã. Sugerem a importância de combater o racismo para que, no futuro, quando brancos e outros grupos atualmente dominantes pertencerem à minoria, prevaleça uma nova ordem cultural e legal baseada na justiça e na não-discriminação. Tal ordem será do interesse dos negros, dos brancos e de todos os povos destas nações.
Movimentos de direitos humanos
O movimento global pelos direitos humanos é uma das idéias mais profundas e animadoras do nosso tempo. As Nações Unidas adotaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, em resposta ao racismo e ao genocídio. A justiça racial está no cerne deste movimento mundial, que está ganhando força.
Hoje, no Brasil, depois de décadas de regime militar, ativismo e redemocratização, um "Programa Nacional de Direitos Humanos" foi anunciado pelo Governo Federal. O Programa reconhece não apenas a discriminação sofrida por afro-brasileiros e outros, como também, os direitos humanos como preocupação legítima do governo. É um marco no desenvolvimento de políticas e de mudanças culturais, sociais, econômicas e políticas para melhorar a condição dos afro-brasileiros.
A queda do apartheid na África do Sul resultou das lutas do povo sul-africano, mas seus esforços foram apoiados pelo ativismo de pessoas e organizações do mundo inteiro que se opuseram ao antigo regime. Esta experiência serve como exemplo do poder que o movimento internacional de direitos humanos poderá mobilizar no futuro.
A nova África do Sul está fundamentada no compromisso constitucional com a igualdade básica de todos os cidadãos e na determinação no sentido de nunca mais permitir que prosperem o racismo, sexismo ou outras formas de preconceito banidas pelas normas internacionais de direitos humanos. O desafio daqui para frente é de imbuir - em pessoas acostumadas há muito tempo ao privilégio, ou por outro lado à subordinação racial - a sensação de um futuro compartilhado, desmantelar antigas antipatias, efetuar melhorias concretas em termos de condições materiais e oportunidades de vida para a maioria negra, e promover uma nova identidade nacional sul-africana que transcenda a raça.
Nos Estados Unidos, onde muitas pessoas acreditam há muito tempo que as normas de direitos humanos têm uma utilidade limitada, existe uma consciência crescente de que o movimento dos direitos humanos é de fato um componente muito importante dos esforços para combater o racismo e o sexismo. "Os direitos das mulheres são direitos humanos", disseram ativistas americanas na Conferência Mundial das Nações Unidas em Beijing em 1995. Ativistas estão pressionando o governo dos Estados Unidos para ratificar as convenções de direitos humanos e honrar seu conteúdo, à medida que o mundo se prepara para a Conferência Mundial da Organização das Nações Unidas contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas em 2001. Enquanto aumentam os protestos de americanos contra a chamada sweat shop labor (exploração de mão-de-obra informal, desqualificada, sub-remunerada e "flexibilizada"), as políticas das agências internacionais e a globalização, claramente o movimento internacional de direitos humanos representa uma força com a qual há de se negociar.
Democratização
Pela primeira vez na história, a maioria da população mundial vive sob regimes de governo que professam princípios democráticos. "A capacidade do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a inclinação do homem para a injustiça torna a democracia necessária" disse o teólogo Reinhold Niebuhr em 1960, referindo-se a toda a humanidade.
O racismo corrói os princípios e práticas democráticos, violando os preceitos de igualdade, justiça e responsabilidade que dão sentido à governança democrática. O racismo também alimenta o desrespeito pelo estado de direito e corrompe os processos democráticos. Existe uma literatura crescente sugerindo um forte elo entre o crescimento econômico e o desenvolvimento, por um lado, e a presença de um processo de governo democrático pelo outro, permitindo que todos desenvolvam e concorram num campo de jogo nivelado e igualitário.
Brasil e África do Sul são estados democráticos relativamente jovens, em processo de consolidação. Nos Estados Unidos, uma democracia mais antiga em termos formais, começou de fato há apenas 40 anos o desmantelamento sistemático das estruturas que definiam uma cidadania de segunda classe para mulheres, afro-americanos e outros grupos vulneráveis. Os três países ainda enfrentam o desafio urgente no sentido de expandir e sustentar o engajamento da sociedade civil e de demonstrar ao povo, na prática, a promessa implícita na teoria democrática.
No século XXI, as disparidades raciais e a divisão internacional entre "Norte" e "Sul" irão por à prova os governos democráticos. No Brasil, África do Sul e Estados Unidos, a democracia atingirá plena força e significado apenas se cada nação substituir a alienação social com a justiça social.
Movimentos de mulheres
Os movimentos de mulheres estão buscando a igualdade de gênero como um direito fundamental, questão de justiça simples e um dos meios mais eficazes para melhorar os padrões mundiais de vida e de produtividade através das fronteiras de país, raça e etnicidade. Cada vez mais, estes movimentos levarão as nações a reconhecer uma verdade histórica: o racismo e o sexismo como "dois lados da mesma moeda".
As mulheres constituem a maioria de população mundial, mas como observa Pregs Govender, membro do Parlamento sul-africano, "também formam a maioria dos desempregados, analfabetos, sem-teto, pobres, violados e aqueles que cuidam das crianças, dos idosos e dos deficientes". Portanto, na África do Sul assim como em outros países, as condições e oportunidades disponíveis para as mulheres são uma medida verdadeira de como as sociedades estão lidando com os problemas estruturais de miséria e exclusão.
No Brasil, África do Sul e Estados Unidos, as mulheres de diferentes "raças" lidam todos os dias com problemas e desafios comuns—incluindo atitudes antigas e novas sobre gênero, direitos reprodutivos, mudanças na estrutura familiar, urbanização, educação das crianças e outras. No novo século, as nações somente poderão atingir desenvolvimento econômico e social eqüitativo, crescimento demográfico sustentável, cuidados genuínos para crianças e idosos e não-violência nos seus lares e culturas se avançarem agressivamente na conquista da eqüidade de gênero.
Paz e reconciliação
O racismo sempre teve o rápido poder de criar conflitos mortíferos. Na medida que as distâncias globais encolhem, áreas urbanas crescem e imigração internacional aumenta, muitas nações enfrentarão novos perigos. Suas cidades e periferias receberão populações novas ou pouco conhecidas, frequentemente sobrepostas pela primeira vez, com culturas, idiomas e hábitos diferentes, aparentemente incompatíveis ou até hostis. Tais desdobramentos ameaçam escalar agudamente os conflitos entre diversos grupos no mundo.
Brasil, África do Sul e Estados Unidos estão no vórtice dessas tendências mundiais. Os três países devem encontrar maneiras de reconciliar as desavenças e as diferenças humanas sem recorrer à violência. Seu futuro ajudará a determinar, no próximo século, se a diversidade humana será a força motriz do progresso social, ou então a base para a continuação do conflito social sem trégua.
A maioria das nações dispõe de mecanismos limitados para reunir grupos diversos numa compreensão mútua ou num enfrentamento das conseqüências contemporâneas do passado. A Comissão Sul-Africana de Verdade e Reconciliação representou um esforço abrangente e ambicioso no sentido de documentar os efeitos do racismo e fornecer um foro para ajudar o povo sul-africano a lidar com o horror do passado e reconciliar o trauma e perda atribuíveis ao apartheid. Com tempo e instrumentos limitados, a Comissão de Verdade e Reconciliação publicou seu relatório em 1998, onde conclui: "A reconciliação exige um compromisso - sobretudo daqueles que se beneficiaram no passado e que continuam se beneficiando da discriminação passada - à transformação das desigualdades injustas e da pobreza que desumaniza".
Nos Estados Unidos, a Iniciativa sobre Raça do Presidente William Clinton tentou criar em 1997-98 "um diálogo fundamentado na razão, e não um debate divisivo, que fosse finalmente aliviar a linha de falha baseada em raça". No Brasil, Presidente Fernando Henrique Cardoso convocou um Grupo Interministerial de Trabalho para estudar e submeter recomendações sobre respostas governamentais à discriminação racial.
Embora louváveis, tais esforços refletem as dificuldades envolvidas na reconciliação de diferenças entre pessoas de ascendência ou aparência européia ou africana, num contexto em que injustiças sociais profundas estão implicadas. Como observa Charles V. Hamilton, professor emérito da Universidade Columbia: "não são bem as verdades do passado que estão em jogo, mas se tais verdades são realmente relevantes para futuras políticas de reconciliação".
Expor a verdade sobre o passado — e o presente — de cada pais continua sendo essencial. Tal exposição da verdade não é um caminho direto para a paz e reconciliação. Não é um substituto para a justiça social, mas é um pré-requisito.
Implicações para o ativismo
Os desdobramentos e tendências das questões discutidas acima têm numerosas implicações para os ativistas no combate ao racismo no futuro. Nas três nações, as estratégias no combate ao racismo têm sido tão variadas quanto suas próprias manifestações.
Entre os tipos de esforços no Brasil, África do Sul e Estados Unidos no sentido de combater o racismo e a discriminação estão incluídos:
Esta lista está longe de ser abrangente em termos dos esforços necessários para reparar séculos de racismo e desigualdade. Por exemplo, junto com esses esforços contra a discriminação, são necessárias medidas contra a pobreza nos três países. Raça, pobreza e classe são fatores interativos que afetam o bem-estar dos afro-descendentes, e são necessárias abordagens abrangentes que combatam todos os aspectos envolvidos em situações de desvantagem. Indivíduos, empresas, governos e organizações da sociedade civil — sindicatos, comunidades religiosas, escolas e universidades, organizações civis ou de consumidores, instituições de direito ou de política de interesse público, entidades filantrópicas e associações de classe, entre muitas outras — todos têm um papel a desempenhar na redução da discriminação racial e dos problemas interligados de pobreza e desigualdade.
Infelizmente, muitos desses próprios grupos ainda refletem normas e práticas sociais antiquadas e excludentes. Precisam explorar maneiras para se tornarem mais contemporâneos, mais inclusivos e mais representativos de todo o tecido social dos diversos povos que constituem não apenas suas próprias nações como também a comunidade global da qual fazem parte.
Abraçando um futuro interdependente
O mundo está mudando; vai se tornar ainda "menor", e seus cidadãos e nações serão mais interdependentes no século XXI. Racismo, sexismo e outras formas de desumanidade e discriminação não vão desaparecer até que os indivíduos e nações resolvam mudar, e depois se comprometam com essas transformações de todas as maneiras e em todas as esferas possíveis.
Não há uma solução única ao problema do racismo. Há apenas muitas soluções. Isso significa que existem coisas que cada um de nós pode fazer para combater o racismo. A história nos ensina que a mudança ocorre através dos esforços acumulados de muitas pessoas, de todas as áreas da vida, que compreendam que a liberdade e os direitos humanos são indivisíveis.
Certa vez Nelson Mandela escreveu:
Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta.
Nós temos escolhas a fazer. Não importa se acreditamos ou não que criamos os problemas causados pelo racismo ou se praticamos ou não a discriminação; todos compartilhamos uma responsabilidade e temos um interesse em combater o racismo.
Podemos trabalhar agora para criar um futuro compartilhado e viável, ou então continuar no conflito sem sentido que tem minado tantas vidas. A conjuntura atual pode se tornar um momento de definição do bem, se recordarmos nosso passado com honestidade, imaginarmos nosso futuro com coragem e deixarmos os anjos da nossa natureza trabalharem como verdadeiros arquitetos do mundo.
A esperança de um futuro além do racismo depende daquilo que cada um de nós estiver disposto a fazer com nossas vidas, nossas instituições, nossos países e nosso mundo. Vivemos em sociedades diferentes, mas cada vez mais no mesmo mundo.
Membros do Grupo Internacional de Trabalho e Consultoria
Iniciativa Comparativa de Relações Humanas
Peter Bell, CARE
Ana Maria Brasileiro, Banco Interamericano de Desenvolvimento
Lynn Walker Huntley, Fundação Sulista de Educação
Wilmot James, Universidade da Cidade do Cabo
Shaun Johnson, Independent Newspapers Holdings Limited
Paulo Sergio Pinheiro, Universidade de Sao Paulo
Edna Roland, Fala Preta
Khehla Shubane, Fundação Nelson Mandela
Ratnamala Singh, Fundação Nacional de Pesquisa da África do Sul
Gloria Steinem, Ms. Magazine
Franklin A. Thomas, Grupo de Estudos TFF
Tom Uhlman, Lucent Technologies
O Grupo Internacional de Trabalho e Consultoria têm prestado orientação à Iniciativa Comparativa de Relações Humanas desde seu início. As informações apresentadas neste Resumo Executivo servem como destaque para o Relatório Geral deste Grupo.